quarta-feira, 13 de junho de 2007

Uma defesa da reforma política


O debate a respeito da reforma política faz-se importante no sentido de tornar nosso sistema político-partidário mais transparente, estável e previsível. Não existe um modelo ideal, prêt-à-porter. Nem será a reforma a panacéia que resolverá todas as mazelas nacionais. Não se trata de nada disso. Mas é possível, sim, aperfeiçoar o sistema, adaptá-lo às caracterísitcas da nossa cultura política, fazendo com que funcione melhor.


Cabe, portanto, antes de tudo, entender como sistema político-partidário (SPP) funciona atualmente, no que se refere à votação legislativa, que é o alvo da reforma. O sistema vigente é proporcional. Significa que votamos na coligação – aglomerado de partidos – e cada uma delas elegerá um número de representantes proporcional à votação obtida. Este número é estabelecido por meio do quociente eleitoral, que é calculado dividindo os votos válidos (menos os nulos e brancos) pelas cadeiras a serem preenchidas. As coligações definem quantos de seus representantes serão eleitos dividindo-se sua votação pelo quociente. Uma vez eleitos, as coligações não têm qualquer obrigação de manter o vínculo no exercício da legislatura. A esse sistema, costuma-se chamar de lista aberta, em que o eleitor define, por meio do voto no candidato, a sua ordem.


São evidentes as falhas e distorções desse SPP. Trata-se de algo complexo, cujo entendimento escapa mesmo aos eleitores mais bem informados. O eleitor não sabe que seu voto vai, na verdade, para toda a coligação – apenas ele indica em que posição da lista ele gostaria que o seu candidato estivesse. As cúpulas partidárias têm o poder de privilegiar um candidato em detrimento de outros, por meio de maior tempo na propaganda de TV, por exemplo. O voto individual encarece sobremaneira as eleições, beneficia aqueles candidatos de maior poder econômico. Esse SPP induz, também, à concorrência intrapartidária, o que é sui generis no mundo inteiro: os candidatos disputam o voto com os seus próprios colegas de partido (para estar na frente da lista) e não com os adversários de outros partidos. Por fim, nem sempre o candidato mais votado é eleito. Ao contrário. Casos extremos ilustram bem esse ponto: quando Enéas obteve aquela votação de um milhão de votos, levou consigo para a Câmara deputados cuja votação mal excedia os cem votos. Enquanto outros candidatos, cuja coligação talvez não tenha atingido o quociente, ou que não tenham entrado na lista, apesar de terem muito mais voto, ficaram de fora.


Como espero ter deixado claro, o nosso SPP apresenta graves falhas que distorcem a vontade popular, tornam o processo obscuro para o eleitor, extremamente caro para os candidatos, e menosprezam a disputa propriamente programática (de idéias). Tudo isso leva a um problema maior, que é o fato de, a cada nova legislatura, não haver uma maioria clara para nenhum dos lados (oposição versus governo). Conseqüentemente, cada novo governo precisa construir maiorias, negociando não com partidos, mas com grupos políticos a despeito dos partidos, recorrendo a métodos muitas vezes reprováveis (fisiologismo, como sabemos, é o menos grave deles). Essa necessidade está na base dos principais escandâlos recentes. As maiorias, estabelecidas nessas condições, são extremamente frágeis.


Devemos também reconhecer os méritos do nosso sistema. Nós, brasileiros, temos dificuldade em reconhecer nossas qualidades. Tendemos a ser auto-depreciativos demais. Nosso SPP, apesar de tudo, é extremamente aberto. O nosso Congresso Nacional é a cara do Brasil, muito representativo da sociedade brasileira. Temos uma das mais altas taxas de renovação do mundo – o que é bom, de um lado, pois indica maior acesso, por outro, torna-o mais instável. Trata-se também de uma instituição com uma burocracia permanente bastante competente; o poder público o mais transparente, que sofre o maior escrutínio por parte da sociedade e o mais sensível às suas demanadas.


É por isso mesmo que sua reforma é um imperativo. O projeto de reforma existente, de autoria de Ronaldo Caiado (DEM-GO) é muito bom – e não é por acaso que nunca tenha sido votado. Ele é bom porque trata dos principais defeitos do SPP, tais quais os apresentamos aqui. O ponto essencial é o voto em lista fachada. Isso tornará o processo mais claro, transparente para o eleitor. Ele saberá exatamente em quem está votando. A lista fechada (ou pré-ordenada) também acaba com a aberração que é a disputa eleitoral interna, tornando os partidos mais coesos e o debate, mais programático. Também o tornará mais barato, ao encerrar com as candidaturas individuais – e aqui se encaixa outro ponto do projeto, que é o financiamento público. O fim das coligações também favorece o eleitor – que atualmente vota em partidos e candidatos sem nem saber disso – assim como o processo de formação de maiorias: em seu lugar, instituir-se-iam federações partidárias, que teriam a obrigação de agir conjuntamente no exercício da legislatura. Por fim, há fidelidade partidária, que faz sentido nesse contexto. O quociente eleitoral permanece, só que agora sem aquelas distorções apresentadas anteriormente.


Há no Congresso propostas que podem inclusive melhorar o projeto da reforma. A deputada Rita Camata (PMDB-RS) por exemplo propõe um sistema de lista mista, inspirado no modelo belga, em que o eleitor vota duas vezes para o representante parlamentar: uma vez para a lista partidária de sua preferência e outra, para o candidato daquela lista que ele (a) gostaria de ver no topo. Outra proposta, da bancada feminina, é instituir uma alternância entre candidatos e candidatas, de modo a aumentar a participação feminina na política nacional, ainda bastante reduzida. Vale deixar claro, ademais, que esse projeto de reforma não fortalece as cúpulas partidárias – essa é uma das principais críticas à lista fechada. Certamente não fortalece mais do que o sistema atual já o faz. E regras como a que estabelece que a ordem da primeira lista será aquela da votação, em sentido decrescente, das eleições mais recentes, podem dotar o sistema de certa objetividade.


O fato é que, como espero ter mostrado, o SPP apresenta falhas graves que comprometem a qualidade da nossa democracia, tornam mais difícil o exercício do governo assim como a prática parlamentar e induzem a práticas ilícitas e/ou imorais. Precisamos adaptar o SPP brasileiro à nossa realidade, identificando em que ele é incompatível com a nossa cultura política para que possamos, assim, aperfeiçoá-lo. Trata-se de resposta concreta aos escândalos e às denúncias recentes – algo conseqüente, que trará resultados práticos observáveis, dotando a classe política de mais credibilidade presente e de melhor atuação futura.

7 comentários:

Anônimo disse...

Muito didático e bem escrito o seu artigo, Bernardo. Eu confesso a você que não tenho uma opinião formada a respeito, pois acho que os dois flancos do debate tem argumentos sólidos. Por um lado, o voto de lista fechada dá mais poder às cúpulas, e impede que candidatos "outsiders" como Paulo Rubem - que jamais teve prestígio político na cúpula - se eleja. O poder econômico pode ainda ser forte, pois para decisão interna sobre o ordenamento da lista, haverá, com certeza, uso da máquina dos candidatos mais fortes, com maior possibilidade de "distribuir" cartas de inscrição partidária (isso, vamos otimisticamente supor, se a decisão interna para definir a ordem da lista seja feita de forma democrática, entre os membro dos partidos). Por exemplo, Carlos Wilson tem mais votos entre os delegados que Paulo Rubem. Por outro lado, votar em partido tem um quê civilizador, pois obriga os partidos a de fato se diferenciarem dos outros na eleição, com propostas e idéias. As eleições de deputados são extremamente pobres. Quase não se discute o papel do Congresso Nacional, a plataforma dos partidos e os compromissos dele no Parlamento, já que tudo é muito atomizado nos candidatos. Talvez - e põe talvez nisso - os partidos possam ganhar mais organicidade ideológica caso tenham que lutar por votos enquanto partidos (e, claro, a fidelidade partidária seja obrigatória). Estou ainda em dúvida, mas acho que inclino-me mais para o seu lado da questão.

Bernardo Jurema disse...

Essa coisa das cúpulas... é como se não existisse no sistema atual caciquismo forte! Existe já do que jeito que é, não seria causado pela lista pré-ordenada. Pelo projeto atual, Paulo estaria em quinto na lista - foi o quinto mais votado do PT. O mais importante da lista fechada é que é mais honesto com o eleitor. Aliás, pouco se fala do eleitor. As cúpulas têm um grande incentivo a colocar bons nomes nas suas listas. Caso coloquem pessoas a penas de seu agrado, pessoas inexpressivas, impopulares ou safadas - simplesmente tenderão a perder votos! Como no debate sobre a imprensa, não podemos menosprezar a capacidade crítica das pessoas!

diogo jurema disse...

Simpatizo com o voto em lista fechada misto. Me parece que ele abriria mais espaços a esse políticos com menos influência na cúpula partidária...

slavo disse...

acho que o voto em lista fechada pode gerar uma lista vitalícia e hereditária. é um problema grande porque ambas as possibilidades tem problemas. A idéia de lista mista - fechada mas com escolha da posição do candidato é boa mas acho que geraria muita confusão para o eleitor. O financiamento público de campanha parece ser bom, mas quem garante que não haverá dinheiro privado circulando entre a classe política, e mesmo dentro dos partidos para formação da tal lista. Outra coisa é convencer o eleitor de que o dinheiro público vai ser a mais esse "luxo" da classe política. O único ponto indiscutivel é a fidelidade partidária. Sou a favor de mudanças mas existe a possibilidade delas já nascerem viciadas.

diogo jurema disse...

O mais absurdo de tudo, agora, é a nova proposta da Câmara, encabeçada pelo petista Henrique Fontana. Ele sugere que metade dos deputados sejam eleitos por lista fechada e a outra metade por voto direto. Ou seja, os candidatos continuariam a angariar votos para si. Essa proposta é a cara da classe política brasileira: faz de conta que faz uma coisa para a sociedade, debate, debate, debate para depois adotar a coisa mais bizarra de todas porque é a que menos altera o status-quo da classe. Ridículo.

Bernardo Jurema disse...

concordo que desse jeito é melhor deixar como está!

slavo disse...

Seja feita a sua vontade Bernardo, a Camara acabou de aprovar a primeira parte da "reforma": deixa tudo como está [eh Brasil]