sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

Vamos Debater?
Todo tipo de debate, desde que minimamente qualificado, é importante para todos que discutem. Absorver um pouco de uma realidade que não é a nossa e buscar entender seus motivos, suas posições e valores nos transforma em pessoas mais sensíveis a uma verdade que não é a nossa. Discutir é bom, independente de ser política, futebol ou mulher; ao contrário do que muitos defendem, essas coisas são, sim, discutíveis.

Podemos cair no “tudo é relativo”, mas conhecer as relatividades, as diversas posições possíveis com relação a determinado tema, é isso que nos faz crescer como pessoas.

Entender os motivos de uma mulher que decide prostituir-se como meio de vida e sensibilizar-se por seus direitos de cidadã não é menos legítimo do que se nos referíssemos a outra classe, como a de uma doméstica, ambulante, juiz ou deputado. Quem define o que é e deixa de ser moral? Quem define, e baseado em quê, o que é e não permitido? E o que é permitido, por que o é? Em benefício de quem e de quantos?

Embora seja necessário um aprofundamento do debate sobre a regulamentação da prostituição no país, a idéia de garantir os direitos de cidadãs marginalizadas me é simpática. Evidentemente que não podemos regulamentar se for para causar o que aconteceu em Berlim: uma jovem desempregada estava ameaçada de perder seu seguro-desemprego por ter recusado um emprego cujo requisito, entre outros, era o trabalho sexual. Não podemos exigir que todos tenhamos vontade de vender nosso corpo, mas podemos garantir o poder de escolha.

A prostituta, hoje, é uma escrava urbana. Elas prestam serviços a uma elite, garantem a sustentabilidade de um cafetão e não têm muita coisa em troca ou de benefício social referente à atividade que praticam. Por quê?

Antes de defender a regulamentação da prostituição, defendo que paremos para pensar sobre a situação desta classe e sensibilizar-nos quanto a suas necessidades sociais. Afinal, elas são gente; gente da gente, como a gente.

As reivindicações do grupo são em favor dos benefícios sociais, como têm os autônomos, para a classe. Elas poderiam funcionar como autônomas ou como funcionárias de bordéis. O interessante é regulamentar a profissão de modo que elas não sejam mais vítimas do poder financeiro dos cafetões. Regulamentar para tornar este serviço, inclusive, mais seguro: para prestadores de serviço e seus consumidores. É você saber seus direitos e deveres nesta relação, reduzir a violência nesta atividade e inserir a classe à sociedade.

É melhor discutir do que ignorar uma realidade que existe desde sempre. Já há países dando esse passo a frente, como Holanda e Alemanha, e provando que a regulamentação dessas atividades dignificam a pessoa garantindo-a seus direitos de cidadã.

O mais me chamou atenção na enquête realizada foram os 7,69% que dizem não estar nem aí para a regulamentação. Estes ignoram uma necessidade que, obviamente, não é a sua; e assumem uma posição avessa, inclusive, à discussão do tema.

domingo, 22 de janeiro de 2006

Hostilidades

1. Estava eu indo fazer meu cooper diário, aproximando-me do Parque da Cidade. Vestia uma camisa vermelha, das eleições de 2004, estampada com os nomes de Luciana Azevedo (Vereadora 13813) e João Paulo (Prefeito 13). Ia eu, correndo sossegadamente, quando um velho barrigudo passa numa velha bicicleta e, ao curzar por mim, solta: "O PT morreu". E segue pedalando. Covarde. Nem tive tempo para reagir. Foi-se.

2. Novamente, estou eu no meu cooper habitual, à época com meu cabelo longo e a barba crescendo. Espero o sinal fechar para atravessar as seis faixas do Eixo Monumental. Nisso, passa uma kombi, a alguns metros, cujo cobrador grita, de súbito: "Homem da caverna!". Passei um bom tempo rindo sozinho.

3. Outra vez correndo, outra vez indo na direção do Parque. Uns jovens num Chevette anos 80, ou seria 70? - não entendo de carros -, passam por mim, outra vez no Eixo Monumental (Brasília tem uns nomes assim, meio estranhos, pretensiosos, pedantes, ou todas as opções acima). Um deles grita, agressivamente: "Viado!". Não entendi essa aí, até agora.

4. Nos primeiros metros da corrida diária, no descampado que tem no caminho para o Parque, deparo-me com um vira-lata. Em geral, mantenho distância de animais de rua - são sujos, aprendi desde cedo em casa. Mas esse era lindo - preto, brilhante, saudável. Esbocei uma aproximação, estendi a mão. Interpretei uma reação favorável da parte do bicho: ele acelerou seus passos na minha direção. Interpretei errado. Aqueles belos caninos brancos definitivamente não era um sorriso! Ele começava a correr atrás de mim. E mais: ele não estava só. Era uma manilha de vira-latas. Eram três, no total. Três animais selvagens, correndo atrás do transgressor (eu!) que invadia o território deles. De súbito, senti-me num programa do Discovery Channel, e eu não era o predador. Desde que comecei a correr, esse foi o dia em que realmente tinha razões concretas para fazê-lo. E como corri.

5. A alguns metros do meu bloco, em frente ao Colégio Sagrado Coração de Maria (ou alguma variação dessas palavras, não necessariamente nessa ordem), tem, novamente no caminho para o Parque da Cidade, um gramado com umas árvores, em geral não muito altas (porque não muito antigas). Uma das coisas que me fascina em correr é a variedade incrível de pássaros que sempre vejo no caminho. Tem um com uma cauda longa que se abre em forma de "V" quando ele voa. Sempre achei lindo esse bicho. Até que, nesse dia, observei que um deles vinha descendo em minha direção. Descendo velozmente. Muito velozmente. Na verdade, velozmente demais. A ficha demorou alguns segundos para cair. Mas era isso mesmo - ele dava vôos razantes sobre minha cabeça - eu era realmente o alvo. Corri feito um louco. Passada a ameça da Natureza, olhada básica em volta, retomada do ritmo de cooper, aquela cara de tacho do tipo "não aconteceu nada, imagina", sorriso amarelo, e segue em frente. E o pensamento inevitável - "ainda bem que não estava em Recife - com certeza alguém conhecido teria visto a cena". Mas também, lá só tem pardais.

6. Caminhando no meu bloco, indo almoçar. Duas crianças vêm na direção contrária. Uma delas, de uns cinco ou seis anos, me olha, pára um segundo e exclama - "ai, um lobisomem!" - e sai correndo.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Fuck-up

if you wanna be a fuck-up

just be it, i don't care

but my life is fucked up enough

without you being there

so if you wanna be a fuck-up

please be it elsewhere

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

A Folha de Coca – uma causa emblemática

A discussão sobre a política repressiva americana contra a folha de coca é emblemática de uma política externa intervencionista. A intenção dos gringos, assim como antes ao combater o Comunismo, depois o narcotráfico e hoje o terrorismo (ou ambos, como na pobre Colômbia), não é nunca resolver o problema, mas sim perpetuá-lo para justificar a política de interferência nos assuntos internos de países em desenvolvimento, mantendo-os assim sistematicamente dependentes econômica e politicamente.

A luta pela soberania política da Bolívia, por exemplo, passa justamente pela possibilidade de manter uma tradição milenar – o uso da folha de coca – que virou droga justamente nas mãos do “homem branco”. Para que a folha de coca vire uma droga, são necessárias toneladas de folhas que devem passar por um rigoroso e complexo processo químico, que requer químicos que a Bolívia nem sonha em produzir... A produção e comercialização da cocaína exige muito dinheiro, a importação de precursores, influências, contatos internacionais que estão fora do alcance das vítimas da política repressora anti-drogas norte-americana – os pobres agricultores bolivianos, peruanos, equatorianos (que muitas vezes são cooptados para o narcotráfico por pura falta de alternativa – alternativa essa que talvez existiria se parte dos recursos utilizados na repressão fossem dirigidos ao incentivo de novas culturas ou na pesquisa do uso medicinal da folha de coca). No entanto, os produtos químicos vêm – adivinhem de onde! – de países desenvolvidos como os Estados Unidos, por exemplo. Por que não se combate a base do problema? Porque o fato de a cocaína ser ilegal a torna mais cara. E a importação desses produtos gera divisas importantes para essas empresas sediadas nos países ricos. “It’s the economy, stupid!”, como diria Clinton. Além do que, a folha de coca não é a única fonte de cocaína (Wara wara e Chiuchi Coca são outras fontes encontradas nas florestas amazônicas, e dizimá-las seria impossível).

A folha da coca tem muitas propriedades; ela poderia ser explorada para fazer inúmeros medicamentos que melhorariam a qualidade de vida da humanidade, ou pelo menos do povo sofrido da Bolívia: anti-diabéticos, digestivos, tônicos, antialcoólicos, anti-tumorais, oftálmicos, hipertensivos... A lista é imensa, não pára aí. Imagine só, a folha de coca como base disso tudo. A patente seria latino-americana. Os royalties não iriam para nenhuma multinacional norte-americana ou européia. Um absurdo, de acordo com o modelo econômico vigente. Nossa gente não pode produzir esse tipo de coisa! Nosso papel no modelo é prover o sistema com mão-de-obra barata e desqualificada e ser mercado consumidor dos produtos manufaturados vindos de lá longe. Que ousadia essa, hein, querer criar nossos próprios remédios!

A folha de coca era usada na avançada medicina Inca como anestesiante. As folhas também são usadas até hoje para se prever o futuro, como no Brasil se usam búzios (imagine a revolta na Bahia se os americanos chegassem lá proibindo o uso dos búzios!). Quando os espanhóis escravizaram os indígenas dos Andes, forçando-os ao trabalho em condições sub-humanas, era a folha de coca que os dava força e sobrevida. A folha de coca “engana” a fome e afasta o cansaço. Além disso, ela é boa para a digestão e para a respiração (uma questão importante quando se vive em um país onde muitas cidades estão bem além dos 4,000 metros acima do nível do mar), e ainda está para se inventar um melhor remédio contra o zorojchi (o mal-estar causado pela altitude que aflige nativos e turistas).

O resultado é que a política interna da Bolívia é pautada basicamente pelos americanos. “La Embajada” (que dispensa a especificação da nacionalidade, que já está implícita) age como uma instituição política. Congresso e Governo são tão importantes quanto La Embajada. E La Embajada tem poder de veto. Determinado deputado que não votar como gostaria La Embajada pode ser punido gravemente: perdendo o visto para passar as férias com a família em Disneyworld. Esse é o resultado extremo de uma política que atinge a todos os países em desenvolvimento – o que muda é apenas o grau, não a natureza da interferência.

Se o Governo americano tivesse como objetivo real o combate aos males sociais do narcotráfico e de seus efeitos na saúde de seus cidadãos, a política deveria ser outra. Para começar, deveria ser focada na sua própria casa. Os norte-americanos – e isso já é lugar-comum afirmar – são os maiores consumidores de drogas do mundo: maconha, cocaína, heroína... Existe uma lei econômica básica que qualquer manual de Introdução à Economia irá ensinar: onde há demanda, existirá oferta. É simples assim.

A Bolívia é apenas um caso extremo. Mas vivemos tal problema no Brasil também. Seguindo a diretriz da política repressiva norte-americana, nós aqui não avançamos em nada no combate ao narcotráfico. A experiência no mundo nos mostra que a política liberalizante é a mais eficaz. Essa é a tendência nos países mais modernos. Suíça, Inglaterra, Portugal e Holanda à frente já implantaram políticas descriminalizantes com resultados concretos bastante positivos. O Brasil poderia muito bem voltar-se para esses exemplos bem-sucedidos, adaptando-os à nossa realidade social, econômica e cultural. Num país como o nosso, com o clima propício, o estudo da cannabis sativa poderia ser aprofundado, buscando-se o desenvolvimento de medicamentos. Qual universidade brasileira faz isso? Até nos Estados Unidos existem universidades estudando a maconha.

A política americana poderia ser tachada de burra, caso o objetivo deles fosse realmente combater o uso e a produção de drogas. Como não se trata de uma questão de saúde pública, e sim de uma questão de dominação política e econômica, se pode dizer que se trata de uma política muito inteligente de manutenção da dependência dos países em desenvolvimento mundo afora. Essa política de intervenção só deixará de existir quando: 1) nós, povos dependentes, fizermos valer nossa autonomia e levarmos a cabo uma política que atenda aos NOSSOS interesses e não aos dos outros e 2) os eleitores dos Estados Unidos se der conta de que são os políticos que eles elegem que implementam essas políticas que afetam a vida de, digamos, camponeses de Cochabamba.

O cultivo e a pesquisa da maconha no Nordeste brasileiro e da folha de coca na região andina, para ficar nesses exemplos próximos, podem oferecer uma alternativa econômica viável à política repressora que gera tantos conflitos sociais e aprofunda as dificuldades econômicas. Podem ser, em suma, um mecanismo de mudança da realidade social de uma parcela excluída do processo de produção agrícola.

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Escrevi esse texto no primeiro semestre de 2002, ao voltar de uma viagem de um mês na Bolívia. O texto foi motivado numa conversa com um amigo, na qual eu relatava os problemas dos cocaleros - que, aliás, interferiram na minha viagem -, ao que esse amigo respondeu algo como "mas e o que é que eu tenho a ver com isso?". Na hora, não respondi. Escrevi esse texto. A resposta na hora deveria ter sido: tudo! Apesar de terem-se passado alguns anos, o texto permanece bastante atual, por isso compartilho-o aqui com os 5 leitores do blog.

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Hoje, no caminho de volta durante meu cooper, cruzei com a comitiva de Evo Morales, em visita oficial ao Presidente Lula como presidente eleito da Bolívia. Não sei definir bem porquê, mas fiquei emocionado. Acenei, mas ele conversava com alguém e não me viu. As voltas que o mundo dá... Em 2002, quando estive por lá, nunca imaginava que o veria em Brasília, quatro anos depois, muito menos como presidente da Bolívia!

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Acho interessante aproveitar a oportunidade para recomendar - viagem pela América do Sul! Uma coisa que me chamou a atenção foi que praticamente não tinha brasileiros na Bolívia e no Peru. Já no Pantanal do MS, na fronteira com a Bolívia, o pessoal da pousada onde eu fiquei me tomava por israelita -- praticamente não passam brasileiros turistas por lá, muito menos de Recife. Por que isso? Países vizinhos, como Bolívia e Peru, estão bem ao lado. É possível chegar a La Paz de São Paulo, por terra, em dois dias de viagem, entre trem e ônibus. Esses países são relativamente baratos para o brasileiro, o que torna a viagem bastante acessível. São países seguros, tranqüilos para se viajar. Têm uma história pré-colombiana riquíssima, paisagens belíssimas, arquitetura colonial inspiradora. No entanto, os brasileiros não viajam por aí. Quando têm a oportunidade, vão-se para os Estados Unidos ou para a Europa - onde o custo da viagem é muitíssimo mais elevado. Quando muito, vão para Buenos Aires. É importante que os brasileiros descubram a América do Sul. Tem muito o que ver e o que conhecer, bem ao nosso lado, e por preço acessível. É também importante para criar uma mentalidade de comunidade, algo que, a despeito dos eforços do Mercosul, ainda está longe de acontecer. Espero que o texto acima apresentado sirva para atrair a curiosidade sobre esses países que conhecemos tão pouco, mas que compartilham conosco mais do que fronteiras fluidas, e sim uma história e formação sócio-cultural em comum. Antes de olhar longe acima, ou do outro lado do oceano, que tal conhecermos melhor nossa própria vizinhança? Fica a sugestão.