segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Sete meses

A BBC – British Broadcasting, é a rede de TV e rádio pública da Inglaterra. Trata-se de um dos órgãos de imprensa mais tradicionais e respeitados, no país e no mundo. De uns anos pra cá, tem posto em prática uma política de valorização dos sotaques das diferentes regiões do Reino Unido. Até há pouco, o sotaque londrino era o oficial – assim como a Globo instituiu o “carioquês” como a língua oficial do Brasil: qualquer vestígio de regionalismo deveria ser prontamente eliminado. Hoje, na BBC, ouve-se o inglês escocês, galês, irlandês, inglês do norte, inglês do sudeste... Acabou-se a imposição de “dialeto oficial”. Muito bom em termos de multiculturalismo e tal. Mas uma dificuldade a mais para se habituar ao sotaque britânico, que na verdade são múltiplos.


Para financiar a BBC e torná-la independente dos governos de plantão – trata-se de uma emissora pública, não estatal – a fonte de recursos provem de uma anuidade paga por todos os donos de TVs do Reino Unido. Os cegos pagam só a metade. Ainda não sei se o mesmo desconto se aplica aos surdos. Os mudos não têm do que reclamar: nem poderiam.


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Existe uma tradição na Inglaterra que é a de ex-alunos fazerem doações às faculdades em que se formaram. É uma mescla de reconhecimento e gratidão altruístico à instituição acadêmica que os preparou, exibicionismo (“veja como sou bem sucedido e posso fazer essa doação”), e um nada desinterassado intuito de fortalecer a marca da universidade que, afinal de contas, consta do seu currículo. Um desses presentes de ex-alunos transformou-se num mascote não oficial da LSE: um pengüim de um metro. O mimo destronou o “beaver”, o mascote oficial. Talvez num sinal claro da ironia britânica (pode-se atribuir qualquer esquisitice dos ingleses a isso, afinal de contas!), muito melhor o símbolo-mor da breguice (ou, mais adequado dizer, do kitsche) do que o mais convencional e careta beaver. Há uns anos atrás, uns alunos da LSE, após excesso de “pints”, vandalizaram o campus da principal universidade rival – a King’s College. Em represália, estudantes do KC arrancaram e fizeram sumir o estimado pengüim da LSE! As inúmeras câmeras de segurança espalhadas pela cidade – a Inglaterra é o país com o maior número de câmeras de segurança per capita – foram incapazes de desvendar o mistério. Até hoje não se sabe que fim levou a pobre estátua da ave polar. Recentemente, outro pingüim foi adquirido e recolocado no seu devido lugar, dessa vez preso a uma base de concreto reforçada. A volta do mascote trouxe alegria aos estudantes.


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Estou muito orgulhoso do meu sistema imunológico. Desde que cheguei a Londres que não me gripei. Já entro na terceira estação totalmente são. Desde o outono que diversas vezes o silêncio da biblioteca é interrompido pela sinfonia de tosses, espirros, pigarros e outros sons corporais indicativos de saúde precária. Não sei se são os anitcorpos tropicais ou o fato de quase não usar o metrô lotado, ou por pedalar diariamente... o fato é que meu organismo tem reagido bravamente às transições climáticas. E isso porque até recentemente estava despreparado para o inverno londrino, com minhas roupas de frio de há mais de dez anos. Recentemente fui às compras e me equipei. Agora, sim, estou pronto a aguentar o frio. E realizar aquela frase de um amigo inglês, que disse que não existe mau tempo, mas sim roupa inadequada. E sistema imunológica deficiente, acrescento eu!


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Existe na univerisade clube para todos os temas, imagináveis e inimagináveis e até da categoria “que porra é isso?!” (WTF). Outro dia falarei disso. Um dos clubes – que aqui eles chamam de “society” – que faço parte é a “Rowing Society” (clube de remo). Toda a gestão, financeira e organizacional, de cada clube é realizada pelos próprios estudantes. Todo sábado pegamos um trem na Waterloo Station, uma das maiores, e vamos beirando o Tâmisa em direção oeste, até Chiswik, para o local onde os barcos das universidades de Londres ficam guardados. Remamos durante em torno de uma hora. Diferente de quando remava em Brasília, onde um funcionário fazia todo o trabalho “chato” de consertar o barco, lavá-lo, colocá-lo dentro d’água e retirá-lo depois, toda a responsabilidade de manutenção dos barcos cabe a nós, estudantes. Tampouco contatva eu com orientação técnica. Então, embora tenha três anos de experiência de remo (entre o rio Capibaribe e o Lago Paranoá), só agora, no Rio Tâmisa, venho recebendo instruções adequadas. Durante a semana, realizamos treinos “em terra”, no ginásio da universidade. Remar no Tâmisa é incrível. A paisagem é linda, com casas vitorianas e outras mais recentes, do século 20, à margem do rio. Também tem parques à beira do rio, como o Kew Gardens, um dos maiores da cidade. Tem uma linha de metrô e trem urbano que atravessa o rio bem acima da gente e, enquanto remamos, vez por outra é comum vermos os vagões passando sobre nossas cabeças. Ao nosso lado, sempre há um sem-número de patos e gaivotas; e recentemente as comportas de um canal foram abertas especialmente para que um casal de gansos pudessem adentrar no rio, pomposamente, como se estivessem a desfilar. O rio é amplamente utilizado, e não só pelas aves. Tem vários barcos-residências, daqueles tão comuns em Amsterdã. Também barcos maiores, de passeios turísticos. E barcos de remo e caiaques, para o uso esportivo. Os usuários têm várias idades. Na primeira ocasião que remei no Tâmisa, no barco individual, fui ultrapassado por uns três coroas, com barbas e cabelos totalmente alvos. Me deixaram pra trás com facilidade. O vento, mais gelado a cada novo sábado, só incomoda na hora de pôr o barco no rio, com os pés descalços a congelar dentro d’água. Depois de cinco minutos de remada, esquece-se do frio. Que só voltará a incomodar novamente na hora de retirar o barco d’água, quando novamente temos que pôr os pés nus dentro d’água

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Todos os dias a LSE oferece uma quantidade imensa de palestras. São convidados das mais diversas áreas de atuação, ligados a temas das ciências sociais (economia, política, políticas públicas, etc). E geralmente são convidados respeitados em suas devidas áreas de atuação. Integrantes de governos, empresários, acadêmicos, jornalistas, oriundos das mais diversas partes do planeta. Para se ter uma ideia, alguns nomes previstos para janeiro de 2010: o ministro da fazenda da Suécia, Anders Borg; o economista indiano e nobel de economia, professor Amartya Sen; e um ex-ministro inglês, James Purnell. Até agora só fui a um evento: a palestra do presidente Rafael Correa, do Equador. Seu discurso foi muito interessante e me fez olhá-lo com outros olhos. Equivocadamente, e repetindo o cacoete dos grandes meios de comunicação mundiais, tendia a colocá-lo no mesmo balaio de gato chavista. Sua crítica ao neoliberalismo é bem embasada, o que não deveria causar estranhamento, pois ele pós-graduou-se nos Estados Unidos, e teria sido mais controversa um ano e meio atrás; hoje suas críticas são quase consensuais. O aspecto mais importante de sua crítica é a de que um programa eivado de ideologia tivesse a pretensão de ser aplicado em todas as partes do mundo e resolver todos os problemas, da Tailândia ao Equador, da Rússia à Argentina. Uma panacéia que poderia ser aplicada em todas as partes, a despeito de especificidades históricas e culturais.Também reclamou da ideia de que o mercado resolve tudo. Contou uma história engraçada para ilustrar esse ponto. Uma mulher está perdida no deserto, a ponto de morrer de sede. Encontra um homem que tem água e está disposto a ajudá-la. Com uma condição: em troca da água, que salvará sua vida, a mulher deve transar com ele. Pela lógica da teoria econômica clássica, houve aí uma troca em que os dois agentes obtiveram os seus objetivos. A eficiência foi, portanto, máxima. Do ponto de vista moral, no entanto, é evidente o descalabro: a água deveria ter sido dada sem condições. A analogia é forte, mas muito acertada e ilustra fielmente a assimetria que tem historicamente caracterizado as relações econômicas e políticas entre os países ricos e aqueles em desenvolvimento.


As políticas empreendidas por seu governo seguem a linha da social-democracia, muito ao estilo daquelas levadas a cabo pelo governo petista. Seu ponto fraco é sua retórica “bolivariana”; Correa tenta, pelo discurso, dar uma unidade transnacional, que não é lastreada nos fatos, às políticas chavistas. Suas políticas internas são neokeynesianas, assemelhando-se mais às de Lula, na medida em que visam a incentivar a demanda agregada como meio de promover redistribuição de renda e crescimento econômico. Mas, em seu discurso, o presidente equatoriano busca associar-se a Chávez, classificando suas políticas como sendo o que ele chama de “socialismo do século 21”. Essa frase é desprovida de significado, porque o que ele faz não guarda qualquer semelhança com socialismo de século algum, nem tampouco com as políticas desastradas e desastrosas implantadas por seu colega venezuelano. Outro erro é vir falar de socialismo no continente que o experimentou no século 20 e cuja experiência não foi nada agradável.


Detalhe: todas as palestras são disponibilizadas em podcast na página da LSE: veja aqui.


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Estou fazendo um estágio desde o começo do semestre no gabinete de uma deputada do Labour Party (o tradicional Partido Trabalhista britânico, um dos primeiros desse gênero a emergir no mundo). Aqui o voto é distrital, ou seja, cada membro do Parlamento (MP, que é como eles chamam os “deputados federais”) representa uma circunscrição específica. É como se cada bairro de Recife, por exemplo, tivesse seu próprio representante no Congresso Nacional. O sistema distrital é chamado, na literatura da Ciência Política, de “majoritário”, diferente do nosso sistema de grandes distritos (cada estado é um distrito eleitoral no Brasil), que é “proporcional” (cada coligação elege um número de representantes proporcional à quantidade de votos recebida). A vantagem do sistema majoritário é a representatividade geográfica: cada microrregião tem um representante no Parlamento. Outra vantagem é o fato de que o eleitor sabe exatamente quem é o seu representante e, portanto, sabe a quem recorrer sempre que tiver problemas a tratar ou questões a colocar. Por outro lado, há uma distorção intrínseca ao regime majoritário. Emily Thornberry, membro do Parlamento para quem trabalho, se elegeu com uma diferença de meros 400 votos! O sistema proporcional, por definição, reflete de forma mais fiel o sentimento dos eleitores.


O atual governo trabalhista, liderado por Gordon Brown, sofre por fadiga material (os trabalhistas estão no poder desde 1993!) e falta de liderança – digamos que Brown não é o político mais empolgante do mundo. As eleições, que devem ocorrer em abril ou maio, serão disputadíssima. Os “tories” (conservadores) são favoritos, embora a diferença entre eles e os trabalhistas esteja diminuindo e, na última enquete, já tenha caído abaixo dos dois dígitos. Mesmo que o Labour não consiga a maioria dos votos, é possível que permaneça no poder em função de uma potencial aliança com o terceiro partido que vem ganhando força nos últimos anos, os Liberais Democratas (LibDems). Ainda não consegui encaixá-los no espectro político, mas, pelo que entendi, eles tendem a ser ortodoxos na economia e progressistas socialmente. Ou seja, estariam à esquerda dos Tories e à direita do Labour. Mas não é tão simples: em muitas questões, estão à esquerda também do Labour: por exemplo, são contra as guerras (Iraque, Afeganistão), e a favor de política liberalizante em relação às drogas. O LibDem tende a ser mais popular entre os mais jovens. Num sistema proporcional, certamente teriam mais representantes do que no atual sistema majoritário, que tende a incentivar o bipartidarismo (o eleitor se sente impelido a não votar num terceiro partido, preferindo votar num dos dois grandes de modo a não “desperdiçar” o seu voto).


Trabalho no gabinete da constituinte, no bairro que a MP Thornberry representa (Islington South). É interessante porque aprendo muito sobre os hábitos de trabalho britânicos, mas também sobre como funciona na prática o sistema político do país. Recebemos demandas as mais variadas da população local. Os temas mais comuns são pessoais, geralmente ligados a imigração e moradia. Mas também acontece de algum eleitor escrever sobre problemas que não são pessoais, como um que escreveu sobre uma propaganda de um banco que oferecia cartão de crédito com taxas que ele julgava serem abusivas. Uma das minhas funções é ler as correspondências dos eleitores, registrá-las num banco de dados, repondê-las e encaminhar algum tipo de solução a seu problema, fazendo o meio-de-campo entre o eleitor e o órgão governamental que trata do problema levantado pelo eleitor.


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Um hábito que adquiri em Londres é ver diariamente o site do The WeatherChannel. Lá, vejo a temperatura, a sensação térmica, a velocidade do vento e a probabilidade de precipitação, hora a hora. É bastante útil para planejar minhas locomoções ciclísticas pela cidade e evitar de pedalar durante algum toró.


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Vários colegas meus foram para Copenhaguem durante a conferência climática. Um deles, alemão, me contou, via Facebook, algumas coisas que testemunhou por lá e acho interessante compartilhar com vocês, com tradução minha: “Eu vi Serra, ao vivo. Cara, espero que ele não se torne seu presidente. Talvez seja porque o inglês dele é lento, mas ele me pareceu muito pouco dinâmico. Eu não vi Lula ao vivo, vi retransmitido ao vivo num telão – seu discurso foi muito, muito melhor. Sinto inveja de seu país. Ele ofereceu mais do que qualquer outro país, pelo menos dos países mais importantes. Ele foi muito aplaudido pela platéia que o assistiam pelo telão”.


É interessante ouvir depoimentos como esse, sem o filtro da imprensa – um relato direto, sem intermediários – e sem filtro partidário – ele é alemão, não fala português e não tem nenhuma ligação com o Brasil, exceto pelo futebol.


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Já que é período natalino, uma notícia natalina. Tem um programa de TV no Reino Unido chamado “The X Factor”. Nunca vi, mas suponho que seja algo no estilo de “Ídolos”. A cada ano, o vencedor do programa lança uma música que, automaticamente, se torna a canção mais popular do Natal (e por isso é chamada de “Christmas Number 1”). Tem sido assim há pelo menos cinco anos, desde que esse programa existe. Acontece que esse ano surgiu um movimento na Internet para combater o poderio comercial do programa. Escolheram uma música do Rage Against The Machine, “Killing in the name”, dos anos 1990. Quando me inscrevi no grupo Facebook, havia em torno de 500,000 associados. Agora, já passa de 1 milhão! Mais impressionante: esse movimento, totalmente virtual e orgânico, contra uma estrutura pesada da indústria cultural de massa, saiu vencedor: pela primeira vez em anos, a música campeã da parada de sucessos natalina não foi aquela oriunda do programa “The X Factor”: foi a música da banda americana! Quem quiser obter mais informações sobre mais esse exemplo do poder da Internet diante das instituições (econômicas, políticas, culturais) tradicionais, vale a pena visitar a página Facebook do grupo.


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- sobre o sexto mês