sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Lógica falaciosa na cobertura sobre diretor da Al Jazeera

O artigo da jornalista Heloísa Villela, ilustrativo de certa interpretação dominante em setores da blogosfera, peca por lógica faliciosa. Clássico caso de post hoc ergo propter hoc - A falácia está em chegar-se a uma conclusão baseada unicamente na ordem dos acontecimentos, ao invés de tomar em conta outros fatores que possam excluir a conexão. Em outras palavras, "Desde que aquele evento seguiu-se a este, aquele evento deve ter sido causado por este".

O artigo na Foreign Policy, do correspondente baseado no Golfo, chega à seguinte conclusão: "What Wikileaks Tells Us About Al Jazeera: the portrait the leaked cables paint is not evidence of any sort of conspiracy so much as an organization struggling to maintain professional standards." (O que Wikileaks nos diz sobre a Al Jazeera: o retrato pintado pelos telegramas diplomáticos vazados não é evidência de qualquer tipo de conspiração, mas o de uma organização que luta para manter padrões profissionais".

O artigo do Guardian, escrito pelo editor do Oriente Médio, levanta a preocupação, esta sim legítima, com o futuro da rede, pois o substituto de Khanfar é membro da família real.

Em entrevista à Al Jazeera, o próprio ex-diretor-geral fala sobre a sua renúncia. Entre outras coisas, Khanfra frisou:

- Sofremos pressão sempre, os EUA bombardearam escritórios nossos, houve pressão para que não levássemos ao ar as fitas de Bin Laden, mas nós nunca mudamos nossa política;
- Temos diretrizes e política editorial claras, a AlJazeera não é um reflexo de uma única pessoa, não importa quem seja o diretor-geral;
- Eu completei meus 8 anos e eu acho que isso é suficiente para que qualquer gestor dê o seu melhor;
- sobre o que ele vai fazer em seguida: "Eu tenho um projeto que irei anunciar em breve"';
- O público é a segurança para a nossa independência. Nosso público é inteligente e politizado e vai mudar de canal se a integridade for perdida.

Ou seja, a tese, propalada em certos setores da blogosfera mundial, e repetida aqui pela jornalista da TV Record, é simplesmente desinformada, baseada em ilação. Parte de um pedaço, um fragmento de informação e daí extrapola-se para conclusões, no mínimo, precipitadas.

Vamos julgar baseado na cobertura da rede. Ela continua a sua filosofia de dar voz aos sem-voz? Ela vai cessar de questionar o status-quo? Ela vai deixar de apresentar uma pluralidade de pontos de vista, mesmo os que incomodem os poderosos de plantão?

Recomendo, para todos aqueles interessados em mídia global, o programa The Listening Post - espécie de "Observatório da Imprensa" da rede, apresentado pelo jornalista canadense Richard Gizbert - que irá ao ar sexta-feira à noite: o episódio dessa semana abordará a renúncia do diretor-geral da emissora.

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Atualizando: Aqui o episódio sobre a questão.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

É preciso despersonalizar o debate e compreender o processo

Meu amigo Jampa escreveu um texto sobre a situação política do seu pai, o ex-prefeito João Paulo Lima e Silva, e, por extensão, sobre a política pernambucana na última década. Trata-se de uma análise e um convite ao debate. Atendendo ao pedido, retorno a esse blog abandonado.

No primeiro parágrafo, ele estabelece uma analogia entre as transformações da ordem mundial e a realidade política local. “A vontade de falar mal do prefeito João da Costa é hoje o grande dínamo da socialização recifense”, explica. Nessa analogia, seria o prefeito do Recife os Estados Unidos? Não me convenceu a analogia – o que ocorre a nível global, seja economicamente com a crise da dívida, ou politicamente com as revoluções árabes, são processos de ruptura com o passado. Não vejo evidências disso no Brasil ou em Recife, e nenhuma é apresentada no texto. Entendo o processo político brasileiro atual como de aprofundamento, e não de quebra, do regime democrático.

Uma interpretação equivocada da causa do isolamento político do ex-prefeito João Paulo pode ser a razão que tenha levado Jampa a conclusões, a meu ver, equivocadas.

Na sua narrativa, exposta em seu texto no blog e em comentários no Twitter e no Facebook, João Paulo seria um Dom Quixote, lutando contra monstros dentro do PT, que teriam medo de sua pureza política e de sua popularidade. Cita-se uma pesquisa que indicaria que João Paulo seria eleito o próximo prefeito, “independente do partido em que estivesse”. Pode até ser verdade, mas é mera especulação. O próprio ex-prefeito, se fosse depender de pesquisa, jamais teria sido sequer eleito em 2000 – quero dizer apenas que projetar para o futuro números do passado não é empírico; até porque em boa medida trata-se de “recall”. Em seguida, ataca o PT local, taxando-o como “neo-oligarquia”. Diante da falta de exemplo ou de alguma explicação sobre o que se quer dizer com isso, resta-me a questão: mas não são partidos políticos, em certa medida, oligárquicos por definição?

Mas vamos adiante. Ele explica que João Paulo “foi educado politicamente numa tradição de esquerda que entendia o partido como setor de vanguarda da sociedade, que munido de disciplina revolucionária e organicidade ideológica, atingiria os seus objetivos” – seja lá o que “disciplina revolucionária” e “organicidade ideológica” de fato signifiquem. O PT de Pernambuco, por outro lado, seria “um lugar sem nenhuma organicidade ideológica e cheio de interesses particulares”. João da Costa, ao afastar-se do ex-prefeito e aliar-se à cúpula do PT estadual, teria “traído” os nobres ideais do ex-mentor e isso explicaria o insucesso da sua gestão.

Diante dessa inevitável disputa entre o bem e o mal, não restaria ao ex-prefeito senão arrumar uma legenda de aluguel e lançar-se à prefeitura, para salvar a todos dos péssimos políticos pernambucanos. É uma narrativa conveniente, pois exime João Paulo de qualquer responsabilidade – seu isolamento político no PT e fora dele seria devido a fatores externos a ele, nada que estaria sob seu controle; o fiasco da gestão João da Costa tampouco lhe diz respeito. A lógica interna do texto leva inexoravelmente a essa conclusão: a única solução é ele mesmo, apesar e a despeito de todos.

O problema, a meu ver, é que a premissa mesma é que está errada. Essa narrativa da vitimização não me convence porque se João Paulo é vitima de qualquer coisa, é de suas próprias escolhas e ações políticas no passado.

A primeira eleição de João Paulo, em 2000, foi tão imprevisível quanto emocionante. Mais importante, não foi uma vitória que ocorreu no vácuo. O PT vinha crescendo eleitoralmente no Recife no decorrer de toda a década de 1990 e tinha vários setores da sociedade civil organizada mobilizados. Não foi uma vitória pessoal. Foi uma campanha auto-financiada: contribuições dos eleitores ou repasses do próprio partido. E buscou-se compor com as várias correntes do PT. Apesar das dificuldades, o primeiro mandato de João Paulo refletiu essas características de forma clara: foi um governo de cunho francamente popular e de enfrentamento ao status-quo. João Paulo compôs com vários setores do próprio PT, que ocuparam espaço na sua gestão, e de outros partidos. As grandes marcas dos oito anos de João Paulo na verdade se restringem – todas elas – ao primeiro mandato: a inversão do trânsito em Boa Viagem, a regulamentação do transporte público (o fim do transporte clandestino), a Lei dos 12 Bairros, o Programa Guarda-Chuva, habitação popular, aumento do Bolsa Família, a criação do SAMU e das Academias da Cidade.

Infelizmente, o segundo mandato não foi uma continuação do primeiro. Dessa vez, a campanha foi bancada essencialmente pelo setor da construção civil. João Paulo, prefeito bem avaliado e com acesso a financiamento, talvez tenha julgado que poderia prescindir dos aliados políticos. Ao contrário do primeiro mandato, no segundo não buscou compor com as várias correntes do partido ou com aliados de outros partidos. O primeiro mandato tratou-se de uma verdadeira frente popular; já o segundo foi estritamente de João Paulo. E as grandes “marcas” do segundo mandato estão mais para cicatrizes: a reforma da Conde da Boa Vista, a construção das torres gêmeas e o infame parque de Boa Viagem. Nada mais a apresentar.

Em 2006, João Paulo queria ser candidato a governador, mas encontrava-se isolado dentro (e fora) do PT – encontrava-se isolado, não: isolou-se. Humberto Costa foi candidato, sofrendo campanha difamatória braba, e sem o apoio de João Paulo (que diz ser homem de partido, mas fez corpo mole...). Em 2008, mais uma vez o ex-prefeito agiu de forma unilateral. Ao invés de buscar construir um consenso no partido, impôs um nome de sua estrita confiança, alguém do seu círculo pessoal. O PT estadual teve que engolir.

Sem mandato, João Paulo foi alçado à secretaria estadual, mas não durou muito tempo e logo entrou em desavença com o governador Eduardo Campos. João da Costa, constatando o isolamento, colocou o seu próprio interesse político à frente do interesse pessoal de João Paulo. Afinal, o que teria João Paulo a oferecê-lo? Que importantes setores da sociedade civil organizada, ou do sistema político-partidário, ou do próprio PT, João Paulo representa de verdade? Se João Paulo é um político tão astuto quanto Jampa gostaria de crer, o que explica sua crassa incapacidade de agregar e compor, tanto no PT como fora dele, no decorrer da última década? Afinal, política de verdade vai bem além do voto.

João Paulo, agora, sofre por seus próprios erros políticos. O fracasso da gestão João da Costa é seu fracasso. Foi sua incompetência política de fazer alianças dentro e fora do partido que o deixou isolado e que o levou a impor goela abaixo do partido seu principal ex-assessor, que parece ser bem incompetente. Mudar de partido não vai resolver nenhum desses problemas que o colocaram nessa situação. Pode até vir a ser eleito. Mas vai continuar isolado e refém dos interesses privados que ditaram o seu segundo mandato e o do seu sucessor.

A análise de Jampa personaliza a política recifense em torno da figura do seu pai. Além de levar aos erros de análise acima expostos, o mais grave é que isso despolitiza o debate. O caos urbano em que vive o Recife, hoje, não pode ser atribuído exclusivamente ao atual prefeito. É o resultado de toda uma visão de mundo hegemônica e de interesses materiais de poderosos grupos econômicos no estado. Nos últimos 30 anos, o único momento em que houve uma reação organizada e institucionalizada à força desses setores que destroem a cidade em nome de um falso progresso foi justamente na primeira gestão João Paulo. A segunda gestão já foi totalmente servil aos interesses privados. João da Costa é a continuidade da política subordinada aos interesses da construção civil e das empresas de ônibus. As gestões João Paulo diferem mais entre si do que a segunda com relação ao governo João da Costa.

Eu espero que venha sangue novo em 2012. João Paulo já teve a sua oportunidade. Fui eleitor de João Paulo e votei no candidato dele. Mas, agora, precisamos de alguém que reavive aquele 2000. O debate que precisamos não é encontrar heróis quixotescos ou buscar analogias onde não as há – devemos, isto sim, buscar entender como até uma figura como João Paulo foi incapaz de enfrentar os interesses arraigados que subvertem o poder público, corrompem-no e, ao fazê-lo, destroem a cidade em benefício do lucro fácil de uma ínfima minoria. Despersonalizar o debate e compreender o processo, eis o que proponho.