Caetano na 'Rolling Stones'
A reportagem da Rolling Stones Brasil do mês de Agosto sobre Caetano Veloso está excelente. Ele avisa lá no meio da oito páginas (entre texto e ensaio fotográfico): “Eu adoro dar entrevistas. (...) Gosto de falar, falo sobre qualquer assunto, é só me perguntar que saio respondendo”. Ainda bem. Ficamos sabendo como funciona os bastidores da atual turnê e sobre o processo de criação do belíssimo “Cê”. É divertido saber, por exemplo, Jorge Mautner teve uma crise de choro ao ouvir “Odeio”: “Mautner acha bonito que, na hora que entra o refrão dizendo 'odeio você', a canção, em vez de subir, desça e fique mais terna. Então dizia: 'A gente sabe que dizer 'odeio você' é a maneira mais próxima de dizer 'amo você'. Parece um carinho'.”
A entrevista, porém, vai mais a fundo. O que fica evidente é que poucas pessoas entendem tão bem este país como Caetano. O que não é de surpreender, quando levamos em conta a própria concepção e o legado do tropicalismo. A entrevista apenas reforça esta percepção, além de indicar a sua capacidade de se manter contemporâneo, antenado à época em que vive (como sempre, isso se reflete na sua música: “Cê” é atual tanto na temática como na sonoridade). Fica claro também como Caetano é coerente em sua visão de mundo e como isso se reflete na sua vasta obra.
Numa certa passagem, Caetano critica a geração roqueira dos anos 80 (foi provocado a isso pelo entrevistador), pela negação das referências nacionais. Em suas palavras:
“Não sei se isso é necessário [destronar quem veio antes]. Talvez isso seja contraproducente, porque você entra na coisa parecendo que já não está acreditando tanto no seu taco. Penso como Jorge Luis Borges: 'Um grande autor inventa seus precursores'. Ele fala que muita coisa anterior a Kafka passou a ser mais interessante depois dele. Que o passado foi muito mais influenciado por Kafka que o futuro – ou pelo menos tão influenciado quanto. Eu falava [em um texto escrito, nunca publicado] sobre essa questão dessa primeira grande geração de músicos de rock que funcionou no Brasil em todos os níveis: comercialmente, culturalmente, de personalidade. Foi quando o rock dominou pela primeira vez o panorama da coisa brasileira. Mas os precursores disso pareciam para eles não existir. Nem Roberto, nem Erasmo, nem Celly Campelo. Não tinha nada. Nem Raul Seixas, nem Rita Lee, nada. Só Paula Toller deu atenção à Rita: é a exceção que confirma a regra. É uma falta de vontade de admitir esse desenvolvimento orgânico da criatividade brasileira, do que acontece aqui de fato. E como isso vai encorpando. Cada um tem um desejo de se desvencilhar de tudo isso e se vincular automaticamente a um modelo de língua inglesa. 'Não tenho nada a ver com Raul Seixas, nem com Roberto e Erasmo, nem com os tropicalistas, nem com a música brasileira. Mas tenho tudo a ver com Joy Divison ou The Smiths'. Parece que que tem que ser uma adesão imediata a alguma coisa que é forte no munda da cultura de massa dominante”.
Trata-se de uma análise original, lúcida e sólida da música brasileira dos anos 80. No entanto, a força dessa linha de raciocínio vai muito além disso. Trata-se de uma análise precisa da sociedade brasileira, aquela velha coisa de que sempre ouvimos falar – “o brasileiro tem memória curta”. É o nosso descaso com o passado, seja ele imaterial (pensamentos, filosofias... neoliberalismo à Collor de Melo, por exemplo) ou material (a arquitetura, por exemplo: o que é a verticalização do Recife senão a adoção acrítica de um modelo de crescimento inorgânico e estrangeiro?). O brasileiro tende a pensar que o Big Bang aconteceu na semana passada, e que o Brasil nasceu ontem, no vácuo (espacial e temporal). É a eterna espera pelo Salvador da Pátria; a idéia ingênua de que as coisas acontecerão num passe de mágica. É a tentativa constante de transpor automaticamente conceitos e planos teóricos estrangeiros. É a impaciência relativa ao fortalecimento natural (orgânico) das instituições. Parafraseando Caetano: é uma falta de vontade de admitir esse desenvolvimento orgânico da sociedade brasileira!
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Homem