quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
Pingo nos is
Auditoria da dívida externa – principalmente quando ela já se encontra praticamente paga, sobretudo aquela de pior qualidade – e diminuição da carga horária são bandeiras, justamente, da esquerda antiga, fossilizada. As esquerdas modernas, como a inglesa ou a dinamarquesa ou a espanhola, são aquelas justamente que aceitam a flexibilidade. Lá onde insistem numa visão do mundo do trabalho do tempo das máquinas, e não da era da informação, é onde a esquerda vai se ostracilizando – como na França e na Alemanha. A reforma da máquina pública, por aqui, sofre resistência exatamente da velha esquerda, que mistura interesses corporativos com coletivos, representada no Psol (aliás, a dissidência que levou à sua criação foi a votação da... Reforma da Previdência!). Já a Reforma Agrária, o PT não abandonou a bandeira. Apenas trata-se de tema para o qual a correlação de forças na sociedade não se encontra favorável. Os ruralistas têm talvez a mais forte e atuante bancada no Congresso Nacional...
Na verdade, o governo Lula é mais progressista precisamente naqueles setores onde o PT detém o poder – as políticas social, cultural, setoriais (da mulher, do negro, GTBLS ...), ambiental, externa, educacional, da justiça...
Dizer que o PT não seria de esquerda por acusações de roubo é uma visão estranha, que eu não entendo, do que é ser esquerdista. Acho que se trata de uma confusão entre senso ético e visão de mundo. Tem muito direitista honesto e muito esquerdista escroto, oras! Agora, o que distingue o governo do PT é que houve, de fato, um aumento inequívoco da transparência (como testemunham o caso dos cartões de crédito e a autonomia do Procurador-Geral da República, por exemplo) e da fiscalização (PF).
O questionamento do Juros, como se fosse algo necessariamente escuso, é uma visão ideologicamente enviesada. O fato é que existem argumentos técnicos para que a taxa esteja nesse nível alto, embora numa linha decrescente. E os dados macro-econômicos e a relativa imunidade brasileira à crise internacional de algum modo atestam o êxito da política monetária. A qual, aliás, é uma das áreas que nunca esteve sob os auspícios do PT...
O PT e o PSDB são muito diferentes em aspectos essenciais. Trata-se de uma narrativa possível a suposta semelhança entre os dois, embora eu ainda esteja para ser convencido. Para começar, a composição sociológica dos dois não poderia ser mais diferentes. A origem, tampouco. A organização partidária, nem se fala. A abertura aos movimentos sociais, evidenciada em várias áreas do governo federal, é outro sinal distintivo...
Enfim, a visão de certos setores da esquerda brasileira ainda não entenderam as mudanças por que vem passando o mundo nos últimos 20 anos e ficam presos a expectativas e visões há tempos ultrapassadas...
sábado, 23 de fevereiro de 2008
Falando de cinema
Já que os Oscars ocorrem agora, posto aqui uma compilação de uma troca de e-mails com Noé sobre o cinema americano... São as colocações dele, muito interessantes:
Acredito que a maior contribuição dos Estados Unidos da América ao mundo tenha sido a indústria do cinema.
Através dela, toda uma visão de mundo e uma "way of life" foram repassadas, num primeiro momento ao seu próprio mercado consumidor e em seguida ao resto do mundo. Só para exemplificar: o filme de caubói foi um gênero criado por esta indústria que recriou a própria história do país e os seus valores. Se por um lado filmes como "matar ou morrer" ou "os imperdoáveis" abordam questões universais como a solidariedade humana, "rastros de ódio" e "no tempo das diligências" repassou para uma massa ignara o lado preconceituoso desta civilização para com sua população nativa. (Estou citando aqui apenas Grandes Clássicos). E o filme de guerra, que criou a persona coletiva de "emissário da justiça e da liberdade"?
Well... ao longo do século XX esta indústria evoluiu para o que hoje chama-se "entertainment", onde se insere a mídia... responsável, ali, pelo segundo maior ingresso de divisas, se não me engano. Este produto assim como um copo de leite quente, tem uma nata e o resto do leite. A grande maioria joga fora a nata e bebe o leite. Alguns bebem tudo, indiferentemente. Alguns poucos separam a nata e vão juntando até poder batê-la com sal e fazer um creme delicioso para passar no pão, fazer biscoitos ou preparar um bacalhau.
A maior parte da produção do "entertainment"/ mídia, você há de concordar, é um lixo ( talk shows, reality shows, sem falar na imprensa e filmes de tv), responsável pela formação de corações e mentes do seu mercado interno. Ali, se vêm refletidos e, ato contínuo, mimetizam, os Dicks, Harrys e Toms das profundas do Kansas, Tallahassee e Wyoming. Uma população coletivamente jeca, sim ! E, conservadora, se vê como o umbigo do mundo. E tome tiros em Columbine.
Quanto à "primeira democracia do mundo", temo que você esteja sendo envenenado pelo leite daquele copo do "entertainment", e aí reside o meu temor acerca da sua jovem cabecinha !!! e daí esta diatribe (crítica acerba rs rs rs).
Primeira, numeral ordinal ? ... essa forma de governo vem sendo aperfeiçoada neste mundo de meu deus através dos tempos desde os gregos, que cunharam o termo, "n'est-ce pas"? depois outras sociedades, de uma forma ou de outra foram dando forma, trabalhando esta idéia, das reduções guaranís do Paraguai aos teóricos franceses que deram a Thomas Jefferson o caminho das pedras para o dever de casa que foi a sua constituição.
Primeira como atributo de qualidade? ... "je m'en doute". Alguns países europeus estão bem mais avançados neste processo, você deve saber melhor do que eu. E para uma nação que enquanto vendia este rótulo, via mídia, promovia McCarthy, o preconceito racial, a guerra do Vietnã, a desestabilização de governos ( o nosso inclusive !). Isso sem falar das suas próprias mazelas internas como a socal security e coisa e tal.
Há estadistas como FDR, ok. Mas lembre que o contexto histórico da sua chegada ao poder exigia um negociador,"um dealer" que batesse forte e defendesse os interesses de um movimento sindical histórico ( de pelo menos 40 anos e tido como "subversivo") que quando , no início dos anos 30, fez uma marcha a Washington, foi recebida a bala na frente da Casa Branca.
Já Eisenhower... não foi com ele que a ponta do prego da indústria armamentista foi virada? Naquele contexto de guerra fria? (Coréia...)
E hoje, enquanto nós temos Lula... eles têm George W.
"the world is a circle
without a beginning
and nobody knows where it really ends
ev'rything depends on where you
are in the circle
that's spinning around
half of the time
we are upside down "
De resto, como já havia dito, concordo que Obama pode ser o Lula do segundo decênio, depois que uma mulher, branca, avance no grosso da faxina que aqui em casa foi feita por um doutor sociólogo e seus companheiros. E assim outro ciclo se inicia, para a maior glória da História.
We've got to the point. Nada é essencialmente branco nem absolutamente preto. Por isso me assombrou a hiperbólica expressão "primeira democracia do mundo". Foi isso que me empurrou à provocação.
Primeiro: a maior contribuição ( talvez hiperbolicamente também) não foi o cinema... mas a indústria do cinema e o que daí decorre, com a conseqüente formação de uma rede econômica, de uma cadeia produtiva.
A criação de algumas das maiores obras-primas do cinema americano “didn't really meant to...” passaram para a eternidade pela competência de diretores e produtores que deram à massa o valor do ingresso que pagavam: alimento para a auto-estima e para escapar da realidade. (Vide “Casablanca” e “Cantando na chuva”). Uma indústria que tinha mais que agradar ao mercado e atender à demanda. Mostrar que a vida poderia ser bela e não aquela merda cotidiana (“A rosa púrpura do Cairo”), para recolher as divisas e remunerar os acionistas.
Já te disse pra ler "the day of the locust", de Nathaniel West, cuja ação decorre em LA, nos arounds de Hollywood, justamente naquele período pré-FDR. A periferia sempre vai existir e interagir com o centro e se fuder. Pelo menos a curto prazo... é da natureza. Mas Hollywood fez todo jeca acreditar que era lindo e poderoso... até eu... nas matinês do Coliseu.
Westerns, assim como os filmes de guerra, foi uma invenção e uma contribuição...(vide “As cartas de Iwo Jima") que é um sinal do amadurecimento de elementos diferenciados dentro daquele sistema. ( Fico imaginando quem Clint vai apoiar...)
Musicais, contribuição inestimável e intangível à humanidade.
Por que surgiu blues... sapateado...? Vide "Cotton club" de Copolla... foram os crioulos, brother !!! Que se fuderam muito tempo e não podiam nem ver o que os irmãos do palco estavam inventando... niggers were not welcome.... pensa que Billie Holiday tinha lá o respeito que a sua contemporânea "la môme" tinha, "chez elle"? Pas du tout !!!
O pioneirismo, não só não nego, como louvo! Agora o que não engulo é a "primeira democracia do mundo".
E viva Frank Lloyd Wright, Louis Kahn, Scott Fitzgerald, Hemingway, Faulkner, Steinbeck, Tenessee Williams, Busby Berkeley, Gene Kelly, Cole Porter, Gershwin, Ella Fitzgerald, Louis, e um mundo de americanos que só fizeram acrescentar à minha felicidade nesta passagem pela materialidade.
Quanto a sua derradeira frase: "se o cara for bom..." perdoe-me... está mais pra "new york, new york" :" if I can make it there I'll make it anywhere"
A abertura que você fala não é tão escancarada assim... e não apenas lá. Lá, como aqui, como anywhere, a coisa está mais pra o esquema: ajoelhou tem que rezar.
Com todo respeito, tenho dito, Noé.
domingo, 10 de fevereiro de 2008
O PT e a esquerda moderna mundial
O Partido dos Trabalhadores é o maior partido de esquerda da América Latina porque fez governos locais populares, democráticos, criativos – exitosos, em suma. E porque soube adaptar-se através do tempo, reconhecendo a economia de mercado e procurando mitigar seus efeitos sociais "colaterais", bem como fazer a transição de partido de oposição para governista. Ao invés de estancar, evoluiu e incorporou as mudanças por que passou o mundo nas últimas duas décadas. Espontaneamente, traçou o caminho da social-democracia européia. Seguiu, assim, os passos da esquerda moderna do mundo inteiro (sendo modelo inclusive nas democracias desenvolvidas, veja aqui).
O Partido Socialista Espanhol (PSOE) de González que reformou a economia nos anos 1980 – lançando as bases para o atual estágio econômico do país – é o mesmo PSOE de Zapatero que, nos anos 2000, faz as reformas sociais.
O new Labour de Blair, ao renovar sua visão de mundo, aceitando a economia de mercado, ascendeu ao poder depois de décadas de ostracismo, e promoveu importantes avanços na saúde e educação pública da Inglaterra. Corrigiu, assim, o liberalismo econômico exacerbado do tchaterismo - não sem antes tê-lo aceito.
O Partido Trabalhista australiano tirou o premiê incubente – feito inédito desde 1929! - depois de 11 anos de domínio conservador, saindo, assim, do ostracismo, graças não só às promessas progressistas (retirada das tropas do Iraque, adesão ao Protocolo de Quioto), mas também à visão moderna e “market-friendly” de seu líder, o novo premiê Kevin Rudd.
Onde a esquerda engessou-se, não se renovou, tornou-se retrógrada, ela encontra-se à margem – como na França – ou no extremo – como na Venezuela. É um índice de maturidade política do nosso povo o fato de que uma e outra esquerda – a retrógrada e a radical – estarem restritas a pequenos setores residuais. Não significa, frise-se, que o partido de esquerda moderna se deixe ser cooptado. Não se trata disso, mas sim de reconhcer uma dada realidade – e prevalência da economia de mercado – e fazer melhor do que a direita. O Bolsa-família, como destacado em recente matéria na Economist (veja aqui), é claro exemplo desse avanço. A esquerda moderna aperfeiçoa o capitalismo. Onde ela não o faz, a direita termina por se tornar a força progressista, como é o caso de Sarkozy na França.
À medida que saiu do gueto, movimentando-se em direção ao centro do espectro político, o PT foi paulatinamente deixando de ser um partido de setores organizados específicos, corporativo, para transformar-se num partido de massas. Foi desse contato com o eleitorado que, inconscientemente quiçá, o partido moderou-se, tornou-se social-democrata. Isso porque, ao seguir a vontade do eleitorado – ao mesmo tempo em que o influenciava, incluindo temas novos na agenda política nacional -, cuja índole é essencialmente moderada, avessa a extremismos e conflitos, mais tendente à acomodação dos interesses, o partido moldou-se adequadamente. Foram vinte anos de aprendizado que levaram-no a chegar ao poder maduro, evitando os erros da esquerda fossilizada (Jospin na França) ou radical (Chávez na Venezuela). Essa é a beleza do regime democrático: o seu poder moderador.