quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Congresso Nacional e democracia

Visitar o Congresso Nacional é uma experiência pedagógica e, por que não dizer?, inspiradora. Recentemente, fui, a convite de Kollontai, assistir a votação, na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), do Projeto de Lei 1.135/91 que visa discriminalizar (diferente de legalizar) o aborto, cuja relatora é a deputada carioca Jandira Feghali, do PCdoB.

A plenária onde ocorreria a votação estava tomada por opositores do PL. Eram grupos de formação social heterogênea (velhos, jovens, crianças, homens, mulheres...) ligados à Igreja, com camisas e panfletos contendo dizeres religiosos, portando cartazes, rosários e fetos de cerâmica. Eles cantaram hinos religiosos (só reconheci uns dois) e o nacional e gritaram palavras de ordem (do tipo "vida sim, vote não, ano que vem tem eleição"). Uma minoria discreta, com fitas de cor lilás amarradas nas cabeças, formada basicamente por mulheres de classe média de entre 20 e 40 anos (aparentemente), defendia o projeto.

Por falta de quórum (uma manobra dos deputados opositores, aprenderíamos mais tarde), não houve a votação. Os conservadores religiosos comemoraram freneticamente, clamaram Jesus. A mulherada de lilás e uns gatos pingados masculinos, eu inclusive, seguiram para reunião com a relatora na sala da presidência da CSSF.

Calcula-se que em torno de 18 deputados da comissão, entre titulares e suplentes, sejam favoráveis ao PL, o que garantiria a sua aprovação (daí a manobra dos opositores). Os movimentos pela liberdade de escolha das mulheres discutiram com a deputada Jandira estratégias de atuação: nada de protestos histéricos, mas conversa direta com os membros da comissão. O desafio é identificar aqueles que possam ser convencidos. Nesta reunião, ficamos sabendo de um outro PL, este na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), que trata da violência contra a mulher, que precisa ser votado mas o relator ainda não o apresentou.

Por mais imperfeições que a democracia brasileira apresente, uma experiência como esta ilustra a sua vitalidade. É uma pena, mas faz parte do jogo, que certos grupos usufruam dos instrumentos democráticos para atingir objetivos anti-democráticos e anti-republicanos, como é o caso do movimento contra o direito de escolha da mulher. (Penso agora sobre um texto de Fernando Pessoa no qual ele afirma que quanto maior e mais barulhento o protesto, mais fraca é de fato a posição que se quer defender; ele explica que na verdade a manifestação não é em prol de uma causa, ou de alguém, mas sim contra aqueles que são contra a causa, ou a pessoa. Penso nisso e penso: tomara.) Mas essa é, ao mesmo tempo, a beleza da democracia. Como convencê-los da inconveniência de suas idéias?

Lida com valores, religiosos ainda mais, é complicado. Sobretudo, como bem me lembrou Kollontai, quando se trata de um poder remanescente da Igreja sobre o corpo e as atitudes das pessoas. Mas é possível dialogar. Explicar-lhes, por exemplo, que não se trata de o Estado dizer que é certo ou errado que as mulheres ajam de determinada maneira; cabe ao Estado, isto sim, reconhecer que existem mulheres que, por razões que somente a elas próprias dizem respeito, interrompem a gravidez (indepentemente de ser o ato legal ou não). Uma mulher com mais condições econômicas pode sempre contratar um médico particular. No entanto, uma mulher de classe pobre coloca necessariamente sua vida em risco. Além disso, em ambos os casos, sob a legislação vigente, estariam cometendo um crime.

É bom ver que o CN segue funcionando e tratando de questões relevantes para a população. No Brasil, parcela ínfima do eleitorado vota movido por "issues", ou seja, por preocupação com temas específicos (questões), o que é uma falha. Aliás, não sei em que o eleitor brasileiro baseia-se para escolher seu deputado. Há uma discrença em relação ao Legislativo, em parte justificável pela baixa qualidade dos parlamentares; outra razão é a nossa legislação eleitoral, confusa; mas, em boa medida também explicável pela desinformação sobre como funciona o poder legislativo (por exemplo, coisas do tipo acima descrita). Há eleitores, inclusive, que deliberadamente optam por não escolher seus representantes parlamentares, por acharem seu trabalho irrelevante.

Trata-se de erro grave. A imprensa falha em cumprir o seu papel, não divulgando votações como essa, e dando ênfase exacerbada às CPIs e aos escândalos - o que não ajuda em nada o eleitor a bem informar-se. Vale dizer que a Internet é uma fonte inestimável de informação e os sites www.camara.gov.br e www.senado.gov.br são incrivelmente completos e abertos e, nesse sentido, democráticos. São, no entanto, sub-utilizados.

Aproveito, então, a ocasião desse debate que pude presenciar no CN para lembrar a importância dessa instituição democrática, que melhorará apenas se nós, eleitores, exigirmos, de um lado, informação mais completa por parte dos meios de comunição sobre os assuntos legislativos (exercendo nosso poder de cidadão assim como o de consumidor) e, de outro, escolhermos nossos representantes parlamentares de forma mais consciente. Como bem lembraram os nossos concidadãos religiosos, ano que vem tem eleição. Fique atento, desde já, nas opções.

2 comentários:

Bernardo Jurema disse...

Legal esse relato.

Só acho que para completar seu texto, mais do que ficar ligado nas "opções" das próximas eleições, o eleitorado deve buscar causas, "issues" como tu colocas aí, que fundamentem sua decisão. Vemos que o Brasil encontra-se num processo de democratização porque, por mais que tenhamos ferramentas para buscar informações (sites e tv da câmara e do senado) estas ainda não foram democratizadas... ou seja, quem tem internet em casa? Quem tem TV a cabo que capta os canais da Câmara e do Senado?

Enfim, participar, interagir é a melhor forma de crescer e formar opiniões. Conhecer o que move, quais são as motivações de diferente grupos e tentar entendê-los. Entender até para facilitar convencê-los de que aquela idéia não é a mais racional sem agredí-los.

Muito legal... e mais legal ver que Jandhira, uma mulher que conheci ano passado quando foi candidata à prefeitura do Rio, está à frente desta Comissão. Não é a toa.

Anônimo disse...

Ola Bernardo, lucido texto sobre sua ida ao CN , vc tem que visita-los mais vezes e nos passar estas suas impressões , tu sabes que por aqui este problema do aborto é bem resolvido, por causa de uma mulher que lutou bastante e a lei tem o seu nome Simone Veil, judia que sofreu bastante na segunda guerra. Bom, Anne fala que Chirac melhorou a lei a uns três anos atraz, permitindo ao menores a fazer sem a assinatura dos pais e ampliando o tempo de interrupção voluntaria de gestação, IGV.