segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Movimento ao totalitarismo


O erro fundamental da análise que atribui a ruptura democrática venezuelana a Hugo Chávez é o fato de ela não atentar-se para o fato de que não é ele a origem real do fenômeno; toma-se o sintoma pela doença. O processo de corrupção do regime democrático na Venezuela antecede a ascensão de Chávez ao poder; ao contrário, é nesse contexto – e, de fato, em função dele – que esse “outsider” do sistema partidário emerge.


Recorro a Raymond Aron para a análise do caso venezuelano. Segundo o sociólogo francês, “a corrupção das instituições políticas aparece quando o sistema de partidos não corresponde mais aos diferentes grupos de interesse, ou quando o funcionamento do sistema partidário é de tal ordem que nenhuma autoridade estável sai da rivalidade de partidos”. Na Venezuela pré-chavista, ambas as coisas aconteceram. Chávez não gerou a crise da democracia em que vive seu país – ele é fruto dela. A pseudo-democracia então vigente no país consistia na alternância de poder entre os tradicionais Copei e Ação Democrática (AD), que na verdade representavam um mesmo segmento social – a elite. Aron nos adverte, ainda, que os regimes constitucionais-pluralistas podem se corromper seja pelo “excesso de oligarquia”, seja pelo “excesso de demagogia”. No caso venezuelano, vemos que o primeiro deu margem ao segundo. Os ingredientes de degeneração democrática, previstos por Aron há cinqüenta anos, estão lá.


Um dos critérios essenciais que distingue o regime democrático-liberal do totalitário, seguindo sempre a linha de Aron, é o acesso ao poder. Na forma de organização política tal qual desenvolvida historicamente nas sociedades industriais do Ocidente, o acesso ao poder é aberto à concorrência pacífica de múltiplos partidos, segundo regras claras e previamente estabelecidas, pelo exercício do poder político; a oposição é legalmente reconhecida. Nesse caso, o Estado é “ideologicamente laico”. A sociedade deve, numa democracia sã, respeitar as regras constitucionais assim como ter senso de compromisso – este último, essencial, implica o reconhecimento da legitimidade dos argumentos dos outros.


No caso do Estado totalitário, não há disputa pelo poder político – ao menos não legal e, certamente, não pacífica. O partido único confunde-se com o próprio Estado, e é por meio dele a via exclusiva de acesso ao controle do poder; é lá dentro, e só lá, que se dá a disputa pelo controle do Estado. Os dois pilares desse poder – o que o faz ser aceito pela sociedade, ou seja, que tenha legitimidade – é a fé, da parte dos partidários, no ideário preconizado pelo partido; e o medo, ou a certeza da impotência, dos que não crêem na mensagem do partido legal, na sua capacidade de ação.


Havia, na Venezuela, uma situação que era incompatível com um regime constitucional-pluralista: uma minoria fechada, consciente de si, que detinha a um só tempo poder social e autoridade política. Era, de fato, uma aristocracia. O regime democrático venezuelano encontrava-se mal-são. Existem, ainda segundo Aron, três inimigos irredutíveis dos regimes constitucionais-pluralistas: os tradicionalistas, nostálgicos de tempos – e regimes – passados; os economicamente privilegiados que se vêem ameaçados pela tendência de ampliação de direitos sociais às massas inerente ao regime constitucional-pluralista; os sub-proletários, que não se sentem contemplados na forma como funciona o regime. Na Venezuela pré-Chávez, portanto, o terreno era propício para uma crise das instituições democráticas, uma vez que existiam mais de um fator desestabilizante: uma aristocracia ciosa de seus privilégios, de um lado, e a massa da população, à margem do progresso econômico (o “sub-proletariado” de Aron), de outro. A classe política, representativa exclusivamente da oligarquia, não mais refletia os diferentes interesses da sociedade venezuelana. Havia o “excesso de oligarquia”. Chávez não aparece no vácuo.


Ainda útil para entender o caso venezuelano, seguimos com Aron. Ele destaca três modadlidades de passagem de um sistema constitucional-pluralista para um sistema de natureza outra: 1) o golpe de Estado, em que se dá a ruptura da legalidade constitucional; 2) a tomada legal ou semi-legal do poder e, ulteriormente, a convulsão revolucionária; e 3) a derrota militar, a invasão, ou mera ação, estrangeira. Chávez tentou, em meados da década de 1990, a primeira forma de construção do seu regime; falhou. Agora, por meio da segunda modalidade, ele leva adiante o seu projeto. Mas, em que consiste, concretamente, o projeto de poder chavista?


Chávez é presidente desde 1999. Já é possível traçar um perfil desse seu projeto. Não pelo que ele fala; mas o que tem sido feito naquele país. Coisas que poderiam ser atos isolados, ganham significado quando olhados em conjunto. Um dos primeiros atos de seu governo, então, foi a retomada da petrodiplomacia. Ou seja, ele liderou uma diplomacia frente a todos os membros da OPEP. A forte alta do preço do petróleo – até recentemente –, é, sem dúvida, pelo menos em parte decorrente desse seu esforço. Os petrodólores, ou os recursos que entram no país graças ao petróleo, que representa 90% do valor das exportações venezuelanas, são a base tanto de sua política doméstica quanto da política externa. Paralelamente a essa política deliberada de valorização do petróleo, Chávez seguiu uma política doméstica de reformas. Logo no seu primeiro ano de governo, promoveu uma reforma do Judiciário e deu lugar a uma Assembléia Constituinte. Atualmente, o acesso ao poder político passa por um processo de intensa centralização. Isso foi possível, ou tornado mais fácil, graças ao “boiocote” da oposição – que de fato boicotou a si mesma – que optou por não participar nas eleições parlamentares, abrindo caminho para a implantação do projeto chavista de poder sem maiores empecilhos. O Congresso só tem parlamentares da base de apoio de Chávez.


Some-se a isso o poder legislativo irrestrito, a ser concedido pelo Congresso ao Executivo (Chávez), a reeleição ilimitada, o banimento de meios de comunicação opositores, o fim das administrações locais (prefeituras) em favor de “conselhos comunitários” (sic), o expurgo de aliados do governo, uma ideologia estatal oficial, uma confederação de “partidos bolivarianos”, e fica claro que o que está em curso se configura, inequivocamente, numa centralização política gradativa. Nada disso, isoladamente, implica na constituição de um regime autoritário; tomado no conjunto, e visto em retrospecto, a evolução progressiva do processo centralizador, a direção é, sem sombra de dúvida, a de um regime totalitário, de partido único.


Paralelamente, os petrodólares financiam uma política externa populista, pois visa estabelecer diálogo diretamente com as populações estrangeiras, em detrimento das vias institucionais governamentais, diplomáticas. Trata-se, ademais, de uma política externa intervencionista, que não hesita em interferir em assuntos domésticos de outros países. Mas também é uma política externa hipócrita, pois não obstante a retórica hostil em relação a Washington, os americanos são seu principal parceiro comercial, responsável por comprar mais da metade de suas exportações.


As suas políticas, internas e externas, baseiam-se no preço supervalorizado, ainda que em linha descendente, do petróleo; é inconsistente porque depende exclusivamente ou primordialmente de uma questão volátil e contingencial, que não se sustentará no longo prazo; é inconseqüente porque não prevê a fase posterior ao petróleo – a indústria venezuelana se restringe a uns poucos minérios, materiais de construção, alimentos, têxtil e automotores.


Aron escreveu: “Os regimes não se tornam totalitários por um tipo de encadeamento progressivo, mas a partir de uma intenção original, a vontade de transformar fundamentalmente a ordem existente em função de uma ideologia. Os traços comuns aos partidos revolucionários que levaram ao totalitarismo são a amplitude das ambições, o radicalismo das atitudes e o extremismo dos meios”. Como creio ter mostrado aqui, o caso venezuelano se enquadra perfeitamente nessa descrição. O regime chavista preenche os quatro critérios estabelecidos por Aron para definir o fenômeno totalitário:


  1. Um partido que detém o monopólio da atividade política;

  2. Uma ideologia, cuja autoridade é absoluta e se torna a verdade oficial do Estado

  3. O Estado detém o monopólio dos meios de força assim como o dos meios de persuasão;

  4. A maior parte das atividades econômicas e profissionais são submetidas ao Estado.


Na Venezuela, observa-se um movimento gradual na direção de um partido único, de um Estado partidário. Os partidos que apóiam o governo estão em vias de juntar-se sob uma única direção – o Partido da Revolução Bolivariana. A oposição, à margem da vida parlamentar, também é intimidada em outras frentes – de que o banimento de uma estação de TV opositora é o melhor exemplo. Matéria recente da Folha de São Paulo aponta para a passividade das classes média e alta, que já não crêem na possibilidade de mudança – o fator medo. A retórica – e a prática – chavista não aceita qualquer tipo de compromisso com os interesses divergentes. Quando somamos a esse cenário as nacionalizações de setores estratégicos da economia, recém anunciadas, cumpre-se o quarto critério. Questão de tempo ou de graduação, o fato é que há, na Venezuela, uma ditadura em formação.


Não deve ser fácil executar a política externa brasileira nesse cenário nebuloso e em constante movimento. Trata-se de definir uma nova estratégia diante de um contexto regional em vias de transformação, que conta, destarte, e pela primeira vez desde o fim do período autoritário na região, no anos 80, com um país em que vige um regime progressivamente mais fechado. A índole democrática do Presidente Lula contrasta com o ímpeto totalitário do Presidente Chávez. Cabe ao Brasil o desafio de conciliar os interesses brasileiros, que incluem a defesa incondicional da democracia do país, mas também seu desenvolvimento sócio-econômico, e a integração regional. Ou seja, devemos deixar claro nossas enormes diferenças no plano interno, nossa inequívoca vocação democrática, mas não nos furtarmos a abraçar nossos vizinhos naquilo em que convergirmos na política hemisférica.

Um comentário:

Anônimo disse...

muito lúcida a análise. Algo raro no campo minado de nossa esfera pública. Ou se achincalha Chavez (como Reinaldo Azevedo) ou se romantiza o homem (como articulistas da esquerda). Vc tenta compreendê-lo. Deveria de fato mandar para uma publicação de maior alcance!