segunda-feira, 3 de setembro de 2007

As mudanças em curso

A sociedade brasileira, muito sabiamente, elegeu o Lula moderado de 2002, não o Lula radical de 1989. Se alguém ainda tem dúvida – e certos setores à direita e à esquerda do espectro político, por razões opostas, o têm – de que o Presidente Lula, ao assumir em 2003, tinha a opção de agir radicalmente diferente do que está fazendo, vejamos então quais seriam essas possíveis alternativas.

A eleição de Evo Morales na Bolívia é análoga à hipótese de Lula ter sido eleito naquela sua primeira tentativa. Imaturo e inexperiente politicamente, tem se equilibrado entre retórica extremada e a necessidade urgente de compor com os setores sociais que lhe são antagônicos. A tendência é um tortuoso processo de moderação – pelo qual Lula passou como candidato e não como presidente eleito.


Outra alternativa teria sido a de recorrer a uma retórica raivosa que enfatizasse o conflito de classes, instigando o ódio entre compatriotas, passando por cima das instituições e apelando ao culto à personalidade, estabelecendo contato direto com as massas – Lula teria legitimidade para isso. Essa teria sido uma saída fácil, embora irresponsável, no auge da crise política de 2005, por exemplo. Teríamos embarcado no caminho sem volta daquilo que hoje ocorre na Venezuela chavista. Ao invés do confronto entre os setores sociais, da polarização perversa e destrutiva, o Presidente Lula busca a conciliação, o concenso, o acordo. Ao invés de buscar a briga, o Presidente Lula busca o diálogo. Ao invés do apelo personalista e imediatista, o Governo Lula estabelece planos de longo prazo (como o Plano de Desenvolvimento da Educação) e políticas públicas de Estado.


Uma outra possibilidade, ainda, teriam sido as políticas públicas irresponsáveis, que visassem resultados imediatos, ainda que insustentáveis no longo prazo – como o que ocorre na Argentina. O Presidente Lula optou – frise-se, foi uma opção política – por tomar medidas impopulares, mas absolutamente necessárias (aperto fiscal, restrição monetária), no começo do seu governo, revertendo os índices macroeconômicos negativos, alguns dos quais catastróficos, herdados da grave crise de desequilíbrio fiscal de 2001/02. Não tivemos medidas imediatistas e inconseqüentes, como as que agora levam à crise de abastecimento de energia e inflação crescente na Argentina, conseqüência direta das políticas adotadas há quatro anos pelo Presidente Nestor Kirchner e seu “populismo macroeconômico”.


Tampouco vivemos período de incerteza política ou de fraqueza das instituições – problemas que atualmente afetam boa parte da nossa vizinhança. Agora mesmo, o Procurador-Geral da República, indicado pelo próprio presidente, acaba de ter sua denúncia, embasada em provas recolhidas pela Polícia Federal, contra ex-membros do Governo e dos partidos da base aliada acatada pelos 10 ministros do STF, seis dos quais tendo sido igualmente apontados por Lula, o que indica que foram escolhas independentes e apartidárias. Tudo como deveria ser, só que “nunca antes na História desse país” o foram, dessa forma sistematizada – ou já esquecemos do “engavetador-geral da República”?


O privilégio de ter um presidente como o Lula, e não como seus congêneres vizinhos, é resultado da sabedoria da sociedade brasileira, que escolheu isso – o Lula eleito em 2002 e reeleito em 2006, a despeito da campanha contrária por parte da grande imprensa corporativa – minoritária mas barulhenta –, foi o Lula moderado e conciliador, e não o radical e intransigente de 1989. Nesse sentido, Lula tem cumprido plenamente a tarefa da qual foi incumbido pelo povo brasileiro, que será o legado deixado por seu governo: princípio do processo de redistribuição da renda nacional, nos planos social e regional; inversão do processo de desmonte do Estado (concuros públicos); observância e respeito pelas instituições econômicas e político-democráticas existentes; fortalecimento dos órgão de combate à corrupção (PF, PGR, STF); e a inclusão de movimentos sociais e populares no processo político-decisório (as conferências setoriais, temáticas e regionais).


A sociedade brasileira encontra-se num constante processo de transformação nos últimos 20 anos. Aos poucos, vamos resolvendo certos problemas prementes e encarando novos desafios. Nos anos 80, tratava-se de consolidar a redemocratização. Nos anos 90, atingir e manter a estabilidade econômica consumiu nossas energias. Nos anos 2000, começamos a enfrentar nosso déficit social. Vamos aprofundando a democracia, por meio de progressiva inclusão social. Se hoje o setor público de saúde enfrenta problemas, devemos nos lembrar que em parte isso sucede porque hoje ele atende muito mais gente do que quando o SUS foi concebido nos anos 80. E é graças à estabilidade atingida sob FHC que Lula pôde estabelecer o programa civilizador que é o Bolsa Família e que o ministro da Educação, Fernando Hadad, pôde fazer um planejamento para as escolas brasileiras com vistas a daqui a 20 anos! Muita gente ainda não percebe o fenômeno em marcha. Isso acontece porque costuma-se olhar o presente baseando-se em premissas do passado, o que é natural.


O fato de as mudanças não ocorrerem de forma homogênea em todas as frentes faz com que algumas pessoas não se dêem conta de que elas estão ocorrendo, ainda que em ritmos e graus diferenciados em áreas diferentes – o que é absolutamente normal sob o regime democrático, que requer a constante composição de forças.

7 comentários:

Anônimo disse...

Bernardo, você tem uma visão realista do processo, sem dúvida, embora eu discorde aqui e acolá de algumas ênfases que são, a meu ver, indevidas.(eu até te mandei um e-mail)


E você esboça algo que hoje, em dias de fla X flu, não se faz mais, que é a análise de longa duração (para falar como Braudel). Não é pra dizer que o governo FH e Lula foram iguais, porque não foram, mas para afirmar que há políticas - mesmas as ´que mais tem a cara do governo Lula - que tiveram como pressupostos, como condicionantes, coisas que foram conquistadas lá trás.

Para o bem ou para o mal, FH e Lula delinearam os contornos de algumas políticas que certamente serão aperfeiçoadas no futuro, mas que talvez seja o começo de nossa ainda pálida e desnutrida social-democracia. Há gente que quer uma social-democracia sueca pra amanhã. Você vem e diz: não se pode virar Suécia da noite pro dia. Há um cruento processo pra atingir isso.

Eu concordo contigo. Só tenho medo, às vezes, que a gente possa se perder no processo e não chegue a lugar nenhum. Mas isso é coisa de torcedor do Náutico, pra quem as coisas nunca dão certo...;o)

slavo disse...

Muito madura a sua análise Bernardo. Lula é um gênio político, é na minha visão aquilo que um líder, um presidente deve ser: um articulador, alguém capaz de tomar decisões políticas, ele não precisa ser um técnico, um "administrador" no dizer tucano, para gerir de maneira eficiente o Estado. Política não é coisa fácil, é jogo de perde-e-ganha, de muito jogo, muitas vezes sujo é verdade. Mas se há uma possibilidade de construir um melhora dentro de uma sociedade tão hierarquizada e com uma elite tão indiferente e avessa a mudanças, é através desse difícil jogo. 90% das críticas ao PT se baseiam não no PT de 89, mas no projeto de esquerda da década de 60, ou seja, no projeto de revolução socialista. O PT é exatamente criado pela mudança desse projeto das esquerdas, que opta pelo viés democrático e que aprende ao longo do tempo ao adequar seu discurso e sua práxis as circunstâncias práticas [que não seriam as ideais]. Por mais que algumas pessoas finjam, o ódio baseado no preconceito é quase sempre latente, enfim, a velha idéia de que ao governo e ao poder cabe apenas as elites, ao "ilustrado". Se há uma radicalização, ela vem dessa intolerância da direita, dos donos do poder, em aceitar seu fracasso enquanto demiurgo de um projeto político-nacional.

slavo disse...

Berna, enviei e indiquei este teu artigo para o blog do Desabafo, do Daniel Pearl, um blog bem movimentado , ele publicou.

http://desabafopais.blogspot.com/

Espero que não tenha te desagradado.

João disse...

berna, gosto de acompanhar as tuas reflexoes, mesmo que nem sempre concorde.
tenho uma relaçao engraçada com o teu otimismo, ele às vezes me incomoda outras me comove.
finalmente recebi a tua carta, adorei, obrigado. te respondo em breve.

grande abraço

Anônimo disse...

eu não me considero um otimista. me classifico na mesma categoria na qual o próprio Ariano se inclui: realista-esperançoso.

Dado disse...

Você é no mínimo otimista em relação ao PT e ao Governo Lula. No mínimo. Mas é bom ter gente que pense diferente no mundo.

Anônimo disse...

o que eu acho pior desse tipo de comentário - denunciando o meu "otimismo" - em relação ao meu pensamento não é o fato de, implicitamente, querer em verdade dizer "burrice" ou "ingenuidade". Não. O que me incomoda nesse tipo de simplificação é a total falta de fundamento lógico na argumentação. É uma maneira fácil de se esquivar do bom debate, e covarde, por desqualificar o interlocutor. De todo modo, fico grato pela tolerância em relação ao pensamento divergente...