sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Terceiro Mês

Sempre tive dificuldade em entender argumentações geograficamente deterministas sobre a qualidade de vida dos lugares. É comum, por exemplo, atribuir-se a suposta “joie-de-vivre” do brasileiro à afabilidade do clima tropical; ou, por outro lado, supor ingrata a vida acima do trópico de câncer. Bobagem. Sou gente, não planta. Portanto, mais relevante do que o clima meteorológico é o clima social. A frieza e o cinzento que caracterizam o clima da Inglaterra não encontram paralelos no âmbito das relações sociais. Estas têm se revelado abertas, tolerantes, hospitaleiras, plurais, respeitosas – por vezes até mesmo calorosas. Em suma, e acima de tudo, as relações sociais são harmoniosas. Vivo numa sociedade pacífica.

Apesar de não ser essa a minha primeira experiência fora do Brasil, é a primeira na qual tenho plena consciência da liberdade de que desfruto aqui. Entre a guerra tropical e a paz chuvosa, fico com esta última, porque, sendo gente, é o clima social o que me importa.... Pelo menos enquanto o inverno não chega! E como disse um dos meus companheiros de casa: não existe clima ruim, existe roupa inadequada.

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Outro dia comi um cavalo, na Suíça. É um prato popular, mais acessível, inclusive, do que carne de vaca. Além de ser mais barata, é melhor de se comer, é mais macia. Fiquei pensando porquê não adotamos, no Brasil, esse hábito alimentar. E não me refiro ao consumo involuntário do comeu-morreu no Arruda. Não existe nenhuma razão racional que justique a proscrição da carne de cavalo. Resolveríamos, dessa forma, dois problemas sérios: a pobreza de uns e a fome de outros (que geralmente são os mesmos, uns e outros). Geraríamos renda, de um lado, e alimento, do outro. E, de que quebra, ainda resolveríamos um problema de segurança pública, os cavalos soltos pelo meio da rua de grandes cidades brasileiras. Partindo desse princípio, poderíamos adotar, também, hábitos culinários coreanos, incluindo cachorro na nossa dieta: mais fonte de renda, mais fonte de calorias e nutrientes. E menos vira-latas nas ruas. Viajar é bom. Bastou uma só refeição e eu já resolvi boa parte dos problemas urbanos brasileiros.

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O Brasil está na moda. Por onde tenho passado, uma coisa é clara, o Brasil é popular. Essa popularidade transcende classes sociais. Varia a motivação: futebol, música (de bossa nova e Villa Lobos até Calypso e Ivete Sangalo, com tudo o que tem no meio), a “alegria do povo brasileiro” (carnaval, mulatas), caipirinha, praias, surf, capoeira... Isso nem é novidade. Meus pais contam histórias de como, quando eles viajavam pela Europa na era pré-União Europeia, o fato de serem brasileiros abria portas, literalmente, para o ingresso deles nos diferentes países europeus. A novidade, hoje, é o aspecto político também. O Brasil é muito admirado pela estabilidade política (relativa), pelo crescimento em plena crise, pelas políticas públicas progressistas. Só não é popular na extrema esquerda europeia, que prefere preferir a Venezuela (a União Soviética dessa geração, guardadas as devidas proporções). Os árabes também nutrem profunda identidade com relação ao povo brasileiro. Em um trem, certa vez, um líbio de origem popular me explicou que os brasileiros e árabes são povos irmãos. Como evidência disso, ele falou: olha Ronaldo, Roberto Carlos, Romário: eles têm cara de árabe. E apontou o bom relacionamento do presidente Lula com o presidente Kadafi. Isso foi em 2004. Mais recentemente, na África, ser detentor de passaporte brasileiro também é um facilitador de interação social. Na California, no ano passado, um funcionário do metrô, ao saber minha origem, se disse fã de “Cidade de Deus” e do seriado “Cidade dos Homens”. Ainda lá, capoeira é a nova ioga. Nada mais cool. E caipirinha, tanto lá (na América) quanto cá, na Europa, já é comumente escrita com “nh”. Por que não estamos usando essa imensa popularidade do Brasil, que transcende classe social, barreiras étnicas ou religiosas? O Brasil é querido e admirado no mundo todo e por todo mundo (talvez menos no Bolívia, até hoje traumatizada com a perda do Acre – embora a elite de esquerda ainda adore Chico Buarque e inveje o PT e a elite conservadora prefira Caetano e tenha saudades de FHC, pessoas em todos os pontos do espectro político têm um disco de Roberto Carlos). Como nós podemos usar esse “soft power”, afinal é o que nos resta e que é, inclusive, mais eficiente do que o “hard power”. Ela está aí, é um dado da realidade. O desafio é como transformar essa popularidade natural, que não é fruto de nenhuma política de Estado, em diretriz política para atingir os objetivos estratégicos do Brasil.

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São impressionantes os paralelos entre os governos Obama e Lula. Cada vez mais isso fica evidente. Nem falo das próprias eleições de cada um deles, que são simbólicas e inerentemente significativas em si mesmas, pelo que representam em suas respectivas sociedades. Mais importante que isso é que ambos se caracterizam como governos de ruptura de grupos no poder e de visão de mundo. Isso se reflete na abordagem aos problemas mais iminentes, no tipo de oposição que vêm enfrentando e no tipo de críticas que recebem. Observando agora os primeiros meses do governo Obama, escuta-se muito do mesmo que se dizia, e ainda se diz, sobre o governo Lula. Só que em inglês. As críticas, por exemplo, dirigidas ao Geithner pela esquerda americana são muito semelhantes às críticas que setores da esquerda ainda fazem a Meirelles (ambos são representantes dos bancos). A crítica à política externa de Obama poderia muito bem ter saído da boca de Arthur Virgílio (defende “sanções econômicas” e retirada do embaixador brasileiro de La Paz - leia aqui) ou Diogo Mainardi (e o preconceito social: “Lula é semi-analfabeto” - veja aqui), ao invés de Newt Gingrich (defende o uso de ingerência interna para desestabilizar o Irã - leia aqui) ou Glenn Beck (preconceito racial: “Obama is a racist” - veja aqui)... Se eu traduzisse o que fala um e dissesse que é o oturo, ninguém nem perceberia – a postura beligerante, preconceituosa e raivosa é a mesma.

As políticas adotadas, caracterizadas pelo pragmatismo acima de tudo, também são semelhantes. A reforma do sistema de saúde pode ser análogo ao Bolsa Família, pelo que representam em termos de inclusão social. O “stimulus package”, série de investimentos públicos com o intuito de estimular a economia aumentando a demanda, é equivalente ao nosso PAC. Novamente aqui, as críticas que recebem são muitas vezes idênticas, só mudando a língua. Obama oficialmente acabou com a “guerra contra o terror”. Em seu lugar, adota uma postura mais multilateral, que leva em conta os interesses dos outros países, respeita o diálogo e as instituições internacionais e vê o desenvolvimento econômico e social como a forma mais eficaz de combater o terrorismo. Em outras palavras, Obama adotou a diplomacia lulista... Desde que entrou no governo, Lula é obsecado por bio-diesel e etanol. Agora, uma das prioridades de Obama é fazer da economia verde um dos motores da economia americana. Não quero dizer que Obama esteja imitando Lula. Não se trata disso. Mas são governos que, em suas respectivas sociedades, representam uma mudança de rumo, uma ruptura com a situação vigente. Além disso, ambos são governos que adaptam suas ideologias à realidade (e não vice-versa). E que enfretam oposição feroz e intransigente pela defesa do status-quo.

Há uma diferença, porém, em favor dos americanos: a clareza do debate. Lá, o conflito é mais explícito e é mais público. No Brasil, a gente fica refém do moralismo denuncista, que camufla as verdadeiras questões de fundo por trás das disputas político-partidárias. Nos Estados Unidos, por outro lado, há uma pluralidade maior de vozes no debate e há um debate público de fato. Por mais tosco que seja, e muitas vezes é, o debate ocorre. E ele existe em torno de causas. O Partido Republicano não fica acusando Obama de ser ladrão ou bandido. Questionam suas políticas. Exemplo disso é agora a briga de Obama pela reforma do sistema de saúde. Obama quer fazer o SUS lá. É como se, para implantar o Bolsa Família, Lula tivesse que enfrentar uma votação no Congresso Nacional. Sorte nossa que no nosso sistema político ele não tinha que fazer isso. Nunca iria passar. Mas aqui, quando se quer combater o sucesso da admnistração, a oposição muda o assunto – é incapaz de articular um discurso coerente que ofereça à sociedade uma alternativa ao Governo Lula. Não se sabe como se posiciona a oposição em relação às grandes questões do governo Lula (distribuição de renda, crescimento do Nordeste, política externa, etc.) – a gente não sabe porque eles nunca falaram. Sabemos que eles são contra “roubo” (e quem não é?), mas não sabemos o que propõem para tratar disso, até porque eles também estão sujeitos a isso (alô RS, alô Cuiabá). Enquanto isso, ao norte do Rio Grande, os conservadores distorcem os fatos, apelam a sentimentos racistas da população, criam factóides (certos comportamentos da direita são análogos – se nós temos a Abril - leia aqui, eles têm a Fox News - veja aqui). Mas se posicionam claramente: são contra a reforma do sistema de saúde. Se Obama conseguir aprovar algum projeto de reforma, a população poderá julgá-lo se estava correto ou não. O conflito é explícito.

Minha aposta é que vamos observar lá algo parecido com o que ocorreu aqui; o governo Obama é a versão Herbert Richards do governo Lula. O primeiro ano do governo vai ser duro, os ataques da oposição são coordenados com grupos de interesses arraigados e muitas vezes abaixo da cintura; há uma óbvia articulação entre grupos políticos e empresas de comunicação (republicanos e FoxNews, tucanos-pefelistas com a Abril e as Organizações Globo); a popularidade vai cair bastante (já está caindo) e chegará ao ponto em que sua legitimidade será posta em questão (já está sendo); mas, mais adiante, o povo vai sentir uma melhora na qualidade de vida, consequência das políticas públicas adotadas, e Obama terá índices lulistas de apoio popular. Será?

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Estava em Lausanne no dia 1º de agosto – a data da festa nacional da Suíça. Conversei, nesse dia, com um amigo suíço:

Eu: no ano passado, estava nos Estados Unidos no 4 de Julho. Agora estou na Suíça no Primeiro de Agosto.
Ele: ...
Eu: o que isso quer dizer?
Ele: que você tá viajando muito.
Eu: ...

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Tendemos a generalizar a Europa aí no Brasil. “Fulano tá na Europa”, ou “vou passar férias na Europa” ou “Sicrano tá tão europeizado”. É um erro. A Europa é uma colcha retalho, às vezes bem mal remendada (que o diga a ex-Iugoslávia!). Inglaterra, França, Alemanha (os três maiores países da UE) têm mais diferenças entre si do que, digamos, Argentina e Venezuela ou Chile e Colômbia. Se alguém que mora em Portugal disser que mora na Europa, ria. Alto. Sinto informar-lhe, mas em Portugal se está mais perto da África do que da Europa (em mais de um sentido; e não vai aqui nenhum juízo de valor; trata-se, tão-somente, de uma constatação). Viajar na Europa, às vezes, parece dar razão às piores conclusões do determinismo geográfico. Quanto mais descemos, mais bagunçado vai ficando. Recenemente, fiz uma viagem e pude constatar essa variação. De Londres, peguei um trem até Paris. Já no metrô de Paris se percebe a diferença. Tinha passado um mês e meio em Londres e o metrô, apesar de constantemente lotado, é tranquilo e ordenado. Logo no caminho da estação até onde eu ficaria hospedado, e já tinha um doido berrando no vagão ao lado. De Paris, voei para Barcelona. Lá, quando ia subir a escadaria pra sair da estação, ouvi um tumulto do lado de fora. Corri na direação do barulho. Encontrei a maior barafunda. Uma gritaria, um corre-corre, um calor húmido... por um momento me senti na Conde da Boa Vista em plena ação da PM contra os ambulantes. E, mais adiante, tinha o foco do conflito: três pessoas sangrando, atormentadas, sendo socorridas por policiais. Impossível deduzir o que ocorrera. Vi uma mulher especulando com um amigo o que teria acontecido. Me aproximei e perguntei o que era. Resposta: “no lo sé”. O que é isso? Lei do silêncio? Estou no Coque? Depois de uma semana de sol e bagunça tropicais, fui embora. Lausanne acaba com a tese do determinismo geográfico. É um imenso contraste sair da Inglaterra ou da França para a Suíça. Os dois primeiros parecem pobres e decadentes diante do terceiro. A Suíça é como um clube privado exclusivíssimo, cujo ingresso é precedido por árduo e longo processo e que, mesmo assim, raramente é definitivo. (Seguindo essa analogia, a Espanha é o piscinão de Ramos dos branquelos europeus, que descem para se bronzear um pouquinho). Adquirir cidadania suíça é algo raro. Soube de um “português” que mora lá desde que tem 5 anos. Hoje tem uns 30 e ainda é “português”. Na Suíça tudo é muito arrumadinho, tudo é no lugar, tudo tem cheiro de araucária. Exceto as pastagens, que têm cheiro de bosta de vaca mesmo (mesmo sendo as vacas melhor alimentadas do mundo, a bosta delas cheira igualzinho à bosta da vaca magricela da Zona da Mata pernambucana).

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