terça-feira, 21 de novembro de 2006

Eu gosto de Brasília

Já me habituei à surpresa do interlocutor, sempre que perguntado se gosto de morar em Brasília, diante da minha resposta afirmativa. Tornou-se um grande clichê falar mal da Capital - principalmente por parte daquelas pessoas que não a conhecem.

Em parte, tem a ver com a questão política. Os brasileiros do resto do país com freqüência se referem, pejorativamente, "àquele povo de Brasília". O erro crasso desse tipo de comentário é que "aquele povo" são os representantes do Brasil inteiro que lhes representam.

O fato de a cidade ser nova e diferente - e no começo, de fato, não havia nada aqui - é outro motivo que embasa a crítica. Mas, trata-se de uma posição presa ao passado, que não condiz com a realidade dinâmica, cultural, econômica e social, do Distrito Federal.

Não obstante o plano original beirar o neo-fascismo e ser totalmente desumano - assunto sobre o qual escrevi anteriormente, aqui nesse texto -, Brasília surpreende justamente naquilo que "deu errado". Os seus habitantes trataram de humanizar um plano totalmente desumano, trazendo o elemento, essencialmente humano, do imponderável.

Há uma poética nessa cidade, muito específica e original. Basta educar-se o olhar, porque é uma paisagem inusitada, inesperada. As árvores são refúgios dos muitos e variados pássaros - os bonitos, os feios, os grandes e os pequenos, os exóticos, os tropicais, os triviais, os agressivos, os meigos, os migrantes, os que estão aqui desde sempre. A natureza da cidade não é parcimoniosa; todos os fenômenos naturais da cidade são exuberantes. As tempestadades são cinematográficas, com trovões assustadores e raios que rasgam o céu cinzento e pesado, quase desabando sobre nossas cabeças. O pôr do sol é algo de tirar o fôlego, com cores e formas únicas - possível de ser apreciado graças a uma legislação urbana que preservou o horizonte. O período da seca, chegando ao extremo de menos de 20% da umidade relativa do ar (menos do que o Saara!), provoca uma paisagem catastrófica e, paradoxalmente, feliz - pois há tantas pessoas fora, nas calçadas, no Parque da Cidade (o maior parque urbano do mundo), andando, passeando, namorando, pedalando, jogando, dormindo, se bronzeando.

Até as ruas têm sua poeticidade - as avenidas e ruas, sempre uniformes e simétricas, com os carros enfileirados, como formigas coloridas gigantes, indo ao trabalho, voltando para casa. As pichações nas passarelas subterrâneas que cruzam o Eixão revelam uma população criativa (está nessa cidade o maior mural de grafitagem do mundo). O silêncio profundo das noites brasilienses é algo igualmente avassalador - exceto na época das cigarras, que cantam durante uns dois meses, o dia inteiro e noite adentro, anunciando o prenúncio da chuva, antes de voltarem para debaixo da terra e lá ficarem, cumprindo seu ciclo, até setembro do próximo ano.

Tudo isso sem mencionar o lado humano. Há gente de todos os cantos do país, todo tipo de gente. Esse é o verdadeiro "melting pot" nacional. E uma passada no Conic, um centro comercial popular, onde se localizam as sedes dos partidos de esquerda, de sindicatos, o cinema pornô, uma Igreja Universal, o teatro universitário, uma loja massa de camisas estampadas, lojas de skate, lojas de cultura negra (rap, hip hop) - sem mencionar minha ex-imobiliária. Lá é a coisa mais próxima de um "centro de cidade" normal: as pessoas andando, passeando, descansando (no pátio interno). Tudo muito corbusiano, claro: concreto por todos os lados. E andar por entre os blocos, tentar identificar as particularidades das quadras, que no plano original deveriam ser rigidamente semelhantes. E a surpresa de ver surgir, pelo pilotis, uma paisagem nova do outro lado do bloco. E o Lago Paranoá, que ameniza a seca da gente em seu auge, propicia algumas das mais belas vistas da cidade, como a da ponte JK iluminada ao fundo, vista do CCBB, por exemplo. Sem falar dessa área de lazer, convidadtiva para uma nadada, como no fim do Lago Sul, na Hermida Dom Bosco....

Ok, tudo bem que isso se restringe ao Plano Piloto (quase nunca saio dessa parte da cidade), que quando chove pra valer alaga tudo, que tem quem passe mal com a seca, que a Ponte JK é super-mega-faturada, que se você reunir seus amigos no seu apartamento e falar alto demais os vizinhos de bloco não ficarão contentes e poderão xingar-lhes grosseiramente, que as cigarras às vezes encham o saco, que a cidade tem um problema grave de excesso de automóveis... Mas e qual cidade não tem problemas? Ter senso crítico não implica ser chato. E esse texto é só pra falar bem!

5 comentários:

Anônimo disse...

BJ, explica mais ai essa coisa do plano original beirar o neo-facismo. Eh que eu acho muito interessante essas ambiguidades modernas entre sonho de emancipacao e materializacao do seu contrario (a razao, coisa tao humana - o planejamento, coisa tao racionalmente humana- produzindo a desumanidade efetiva,etc). Brsilia tem esse brilho poetico da Capital que representou o sonho de um pais querendo pertencer ao mundo desenvolvido e moderno... O que resta desse sonho incrustado nas bases de concreto da cidade? Schwartz tem um artigo no livro Sequencias Brasileiras onde ele analisa uma tese, digamos assim, pos-moderna muito interessante e se pergunta: com a destruicao completa dos referenciais modernos, que sentido atribuir a arquitetura de Brasilia? Bem, mas eu gostaria de ler tua opiniao sobre a coisa neo-facista...
Abracao,
Jampa.

Bernardo Jurema disse...

jampa, acho que já falei sobre isso em um texto prévio - http://bocejando.blogspot.com/2006/03/terra-prometida-da-casta-mdia.html - em que faco um paraleo com Brave New World. Vou linkar o texto. Há um aspecto mais filosófico, que seria até que ponto ou de que modo a estrutura física da cidade influenciaria ou definiria a visão de mundo ou a maneira de raciocinar de quem vive aqui - regradamente - em oposicao em quem vive em uma cidade "normal". Tenho pensado sobre isso.

Nine disse...

mas olha que rapaz tão poético pra falar do que não é normal!

Anônimo disse...

Bernardo, fuiste tú el que escribió ese texto sobre Bsb?

Al llegar a Brasilia en el 80 creí que me moría, o mejor que la dictadura uruguaya me había condenado a este exilio doloroso en barro rojo.

En el 84 me fui con cierta nostalgia...

Al regresar en el 90 me dije, ah! ésto mejora.

En 94 me fui a Londres y sólo porque era Londres mi corazón no se estrujó demasiado al salir.

En el 2001 regresé de Caracas, compré mi apartamento en la 102 sur, tengo gran parte de la ciudad a mis pies y a lo lejos, todos los amaneceres pasan por mi ventana.

Y amé Brasilia, con pasión, con fervor, con temor de perderla.

En 2004 me fui a Montevideo, mi ciudad, pero me dolía intensamente, haber perdido su simetría verde y las curvas de sus "tesourinhas".

Nos regresamos antes de tiempo, hace 6 meses que estamos nuevamente en el Planalto y cada día me despierto pensando "qué felicidad, estoy en Brasilia" que es ya MI CIUDAD. besos Lyliam

Anônimo disse...

Você sabe que é brasiliense quando...
(texto inicial provavelmente dos anos 80, autor desconhecido, com várias alterações posteriores)

Tú ya eres brasiliense?, puedes analizarlo. besos Lyl
UN DETALLE MI APARTAMENTO ES EN EL "I" DE LA 2!


Você se sente confortável com umidade de 12%.
Você acha que todo lugar tem árvore com tronco torto.
Você se sente à vontade com endereços em coordenadas cartesianas.
Você vê alguém fazer uma barbeiragem no trânsito e diz: "Êeee goianada!"
Você acha que a natureza não fez mais que a obrigação quando você contempla um pôr-do-sol cinematográfico.
Você sabe qual é a profecia de Dom Bosco.
Você classifica "montanha" como substantivo abstrato.
Você acha que casa em forma de pirâmide é normal.
Sua loja favorita era a Bi-Ba-Bô ou a Fofi.
Vê as crianças descerem para brincar "debaixo do bloco".
Você conhece os ministros e deputados como "O pai de Fulaninho".
Você de fato pára o carro na faixa de pedestre.
Ouve dizer "é bem pertinho" e pensa em 50 km.
Mais da metade da sua família é servidor público.
Você sabe quem é Venâncio.
Ao dirigir, você fica meio paranóico com os limites de velocidade.
Você tem medo de jogar lixo pela janela do carro.
Você sabe que pardal não é apenas uma ave.
Cada semana você tem um churrasco diferente para ir.
Você vê o dia começar frio e nublado e acha perfeitamente normal que as onze esteja fazendo um sol de rachar, às cinco da tarde esteja desabando um temporal e à noite faça um calor sufocante, isto além de a chuva ter iniciado e parado cinco vezes durante o dia.
Você não tem a menor noção do que seja uma rua de paralelepípedos.
Você acha que uma casa com piscina é a coisa mais normal do mundo
"Camelo" pra você é bicicleta.
Chama o Parque da Cidade de Pitón.
Até hoje chama o mercado Pão de Açúcar de "Jumbo"
Você sabe que o "Ir ao Gilberto" não quer dizer ir visitar ninguém.
Você dorme, ao menos durante três meses do ano, com uma toalha molhada, umidificador e bacia d'água no quarto e acha tudo muito normal.
Quando param as chuvas, você escuta: "esse ano a seca vai ser brava!". Quando começam as chuvas, você escuta: "esse ano vai chover como nunca!"
Você comemora a primeira chuva de setembro.
Você sabe que a tesourinha não corta nada e que o balão não tem ar.
A frase 'conhece alguém do "I" da 2?' faz perfeito sentido pra você.
Você sabe da rivalidade latente entre os estudantes do Objetivo/Marista (boyzinhos) e os do Sigma (bando de maconhêro!)
Você conhece ao menos uma música do Capital Inicial, e sabe o que eles querem dizer com Musica Urbana.
Você sabe o que querem dizer quando falam da Zoom, da Scaramouche e da 109.
Você diz "Vou ao shopping" sabendo que isso só pode significar ir ao Parkshopping.
Você reclama para o amigo: "não tem nada para fazer nessa cidade."
Fica indignado quando alguém de fora reclama que em Brasília não tem nada para fazer.
Você já foi convidado para passar um final de semana na Chapada dos Veadeiros.
Pelo menos cinquenta pessoas que você conhece fazem ou já fizeram Direito.

* Desconhecemos o nome do autor da versão original do texto acima.
E na versão original, de muitos anos atrás, também tinha...
Sua loja favorita é a Bi-Ba-Bô ou a Fofi.
(faz tempo, hein? Cuidado para não entregar tua idade...)
Você chama o Parque da Cidade de "Pithón".
Você vê as crianças descerem para brincar "debaixo do bloco" .
(é, isso foi antes da era do computador, do videogame e da TV a cabo!)
Você reclama para um amigo: "não tem nada para fazer nessa cidade".
Fica indignado quando alguém de fora reclama que em Brasília não tem nada para fazer!
(e pior que não tinha mesmo, lembra?)