quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Luta social e luta nacional

por: Bernardo Jurema


Desde a emergência do moderno Estado-nação e da consolidação da economia de mercado, a partir de fins do século XVII, tanto lutas sociais (de classes) como nacionais têm-se tornado recorrentes. O antagonismo entre as novas classes sociais provocam conflitos do primeiro tipo. Enquanto o estabelecimento do Estado como defensor dos interesses de sistema econômico territorialmente integrado, do segundo.

A interligação entre os dois conflitos não é apenas de ordem histórica. O Estado surgiu como forma de organização política do poder para atender aos interesses econômicos da burguesia, o que equivale dizer que lutas nacionais são, também, em certa medida, lutas sociais.

O caso da Bolívia contemporânea ilustra bem a questão. De um lado, tem-se a luta nacional contra o domínio estrangeiro dos recursos naturais. Grandes conglomerados de multinacionais européias, americanas e, inclusive, brasileira (Petrobrás) dominam todo o processo de extração e exportação dos hidrocarbonetos bolivianos, deixando apenas uma parcela da renda no país, na forma de royalties e impostos. Há, ademais, a luta contra a intervenção alienígena em políticas públicas domésticas. O consumo e o uso tradicionais seculares da folha de coca, por parte dos povos andinos, são confrontados pela política antidrogas intervencionista e repressora americana, sem qualquer consideração com relação a particularidades culturais locais.

De outro lado, existe um conflito social patente no seio da sociedade boliviana. A maioria indígena tem sido, desde a invasão espanhola, historicamente marginalizada dos processos político, econômico e social. Este grupo, demograficamente majoritário, mas concentrado no norte do país, reivindica nova constituição que os leve em consideração no jogo político-decisório. A minoria, de origem européia, detentora do poder político e econômico, está concentrada no sudeste, onde se encontra boa parte do gás natural e do petróleo, assim como o agrinegócio exportador.

Não é difícil, neste caso, detectar as coincidências entre conflitos sociais e nacionais. A elite nacional, intrinsecamente ligada aos interesses econômicos exógenos, bate-se pela manutenção do status quo.

Tal fenômeno tende a processar-se por todo o mundo em desenvolvimento, vítima do imperialismo econômico dos países ricos do Norte. Encontramos situação análoga à da Bolívia no Brasil, ainda que de forma menos evidente. A luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) contra o grande latifúndio tem carátes de luta social. Latente, porém, está, neste mesmo conflito, a luta nacional. O MST advoga pela agricultura familiar e orgânica voltada para o mercado interno, em detrimento da cultura transgênica da grande propriedade exportadora. A luta entre possuidores e despossuídos de terra mescla-se, desse modo, à luta pela soberania nacional científica e econômica.

Identificar essas conexões entre conflitos sociais e nacionais é imprescindível para que sejamos capazes de melhor interpretar os discursos dos atores sociais envolvidos. Principalmente quando estes recorrem à retórica nacionalista para legitimar e defender interesses particulares. Muitas vezes, a dissimulação do conflito de classes visa, justamente, a defender interesses de classe. Com freqüência, a História mostra-nos que a busca do interesse coletivo (luta nacional) passa pela transformação da relação de poder na sociedade (luta social).

2 comentários:

Anônimo disse...

Quem diria que Bernardo a quem tanto vi defender o fim da luta de classes poderia escrever um tal texto? Vale a pena refletir sobre os motivos de uma tal mudança. Porque mesmo não sendo uma mudança radical (o texto não tem uma visão propriamente marxista da luta de classes), o elemento gerador de todo um debate tido por BJ como "anacrônico" em épocas nem tão loginquas assim deve ser esclarecido ao leitor "avisado" (aquele que lê o texto sabendo tuas opiniões a respeito do mesmo tema quando nas conversas de UFPE, por exemplo.)
BJ, conta aí como se deu essa mudança...

Bernardo Jurema disse...

hahaha! eu nem tinha pensado nisso, jampa... acho que não vejo tanta mudança assim, não. eu apenas discordo da visão de lutas de classes em certos modos mais deterministas, como o marxismo. tá boa a explicação?