Findo o processo de participação decisória direta por que passou a sociedade brasileira, faz-se mister a tentativa de interpretar o seu significado, de modo a que possamos aprender com esta experiência e, assim, aprofundar a democracia brasileira, ainda em vias de formação.
O ineditismo do mecanismo de participação popular legisladora, comum em democracias mais consolidadas, como a americana, por exemplo, em si torna válido o Referendo. Democracia é um processo ininterrupto de construção, e a sociedade aprende apenas ao praticá-la.
Tanto a cobertura jornalística política quanto o debate político no Brasil são, em geral, ruins, uma vez que ficam restrito à política eleitoral. Na discussão suscitada pela realização do Referendo, o país passou por momento de rico e profícuo debate político: falou-se sobre políticas públicas, papel do Estado, direitos individuais, papel da Imprensa, valores morais etc. Tudo isso foi discutido publicamente, na imprensa, nos blogs, nos bares, nas reuniões familiares, no trabalho. É verdade que por vezes o debate tenha sido tosco, desinformado ou preconceituoso. Ou que setores da Imprensa tenham agido anti-jornalisticamente (a “Veja” é um exemplo emblemático do mau jornalismo, ao sistematicamente editorializar a notícia). Afinal de contas, ainda somos inexperientes e estamos aprendendo a lidar com o processo democrático.
Não deixa de ser positivo, ademais, e sem entrar no mérito da questão, o que já fiz em texto precedente, que a opção da ampla maioria dos eleitores tenha sido contrária à posição defendida pelo Governo Federal, por alguns dos principais líderes e partidos políticos do “establishment” político (PT, PMDB, PPS, PSDB, entre outros) e por celebridades. Nada mais democrático. O engajamento de sindicatos e movimentos sociais diversos é algo igualmente notável, que ilustra a vitalidade da democracia brasileira.
Ao olharmos o resultado final do pleito, é interessante tentar identificar qual o recado passado pelas urnas. Claro, é uma mensagem difusa e fragmentada, mas é relevante procurar entender o que passa na cabeça do eleitorado brasileiro.
Dentre os 63% que preferiram o “Não”, a não-mudança, boa parcela foi motivada por uma ideologia conservadora, de direita, que acredita que o direito privado deva primar sobre o direito público. Outra parcela importante expressou, por meio do voto, seu total descrédito em relação às instituições públicas brasileiras – ou seja, nesse caso seria uma resposta à inépcia do Estado brasileiro, em todas as suas esferas, mas em particular no que diz respeito às políticas públicas de segurança – ou à sua inexistência. Há, finalmente, aquela parcela que votou “Não” por desinformação, em parte decorrente da má elaboração da pergunta assim como das propagandas pouco informativas, mas sobretudo por se tratar de um eleitorado que não lê e não se informa. Aqui estão pessoas que não entenderam bem o que estava em jogo. Não sabiam, por exemplo, que não se tratava de desarmamento da população nem da proibição, strictu sensu, da comercialização de armas de fogo. Claro está que houve outras motivações por trás do voto “Não”, como o desinteresse pelo processo como um todo, mas acredito serem essas as principais, conscientes ou inconscientes.
Do lado do “Sim” fica mais fácil analisar, dado o tamanho diminuto do grupo. Grosso modo, é esse o eleitorado de esquerda, progressista, no Brasil, no sentido de que são pessoas que defendem o primado do direito público sobre o privado. Esses eleitores aspiravam uma solução pública para um problema de dimensões públicas. Há também uma parcela, quiçá menor, que votou de forma não necessariamente ideológica, mas pragmática – informados sobre o conteúdo da proposta, deram-se conta de que não se tratava de afronta aos direitos individuais, e sim medida restritiva de acesso a armas, que pouparia vida de brasileiros inocentes. Buscava-se solução prática: menos armas em circulação levaria a menos mortes por armas de fogo, algo empiricamente comprovado, como demonstrou o editorial da Folha de São Paulo sobre o tema.
Mais referendos?
Já há quem fale em mais referendos no futuro. Parece ótimo, desde que aprendamos com os erros deste e aperfeiçoemos o processo. Apresento algumas sugestões:
- O referendo não deve ser realizado simultaneamente ao processo eleitoral, sob o risco de dispersão do debate.
- As perguntas devem ser elaboradas por especialistas que reconhecidamente entendam do assunto, e não por deputados que defendem interesses classistas ou privados.
- O formato da propaganda precisa ser revista. Não tem cabimento que seja nos mesmos moldes da dos políticos. Por exemplo, as inserções de 30 segundos no meio da programação não informam absolutamente nada. A propaganda deveria ser mais longa, mas não diária. E deveria ser apresentada exclusivamente pelos integrantes das respectivas frentes parlamentares, e não por atores (sejam eles pagos ou voluntários).
- É inconcebível que o eleitorado forme sua opinião apenas por meio da TV. Cada eleitor deveria receber em casa uma cartilha explicativa, escrita de forma resumida e didática, que apresentasse as idéias principais das respectivas plataformas. Na França, por exemplo, todo eleitor recebeu uma cópia da Constituição da União Européia e uma cartilha explicativa, antes do referendo que a julgaria.
5 comentários:
Com o sistema de informação que temos (analisando-o de forma quantitativa), é mais do que viável a ampliação da democracia e por que não uma democracia direta?
atualiza aí!
Todo mundo sabe qual é o referendo sobre legalização que esse país precisa...
posso apenas supor o que propõe o nosso prezado anônimo, e sugiro que da próxima vez ele(a) se identifique! E até elabore um pouco mais a idéia...
mas se fôr de legalização de drogas que ele fala, concordo plenamente. ainda que ache que, se fosse tal proposta colocada em votação, sofreria uma fragorosa derrota do "não"... não ficou claro o conservadorismo da sociedade brasileira??
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