sexta-feira, 14 de outubro de 2005

(tomei a liberdade de postar aqui a mensagem de Kollontai que eu já enviei, inclusive, por e-mail)
Diogo,

Eu estive bastante ocupada na semana passada e acabei adiando a vontade de escrever sobre a enquete " O que faz uma mulher manter uma gravidez não-planejada, em relações não estruturadas?" Não sei a quantas anda o debate gerado pela enquete, mas decidi deixar expressa as minhas impressões, de forma resumida, mesmo que esteja um pouco atrasada.

A minha reação ao receber a enquete foi bastante positiva. Considero importante que o debate sobre o aborto esteja acontecendo em meios diferentes dos grupos feministas onde as opiniões são bem mais homogêneas, principalmente num momento de intensificação da jornada brasileira pelo direito ao aborto legal e seguro, desde o dia 28 de setembro, dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina. A enquete me agradou mais ainda quando percebi implicitamente a sua posição de defesa do direito ao aborto legal e seguro – a enquete é, no fim das contas, uma clara provocação às mulheres que decidem "manter uma gravidez não-planejada, em relações não estruturadas".

No entanto, responder a enquete, se tornou uma tarefa difícil, na medida em que não encontrei em nenhuma das respostas os motivos que me passaram pela cabeça quando eu mesma precisei, há alguns anos atrás, pesar os prós e contras de escolher o aborto.

Analisei cada um dos motivos propostos, de acordo com a minha experiência: Os motivos "religião", "vergonha" e "desinformação" passam muito longe de mim e passam longe também da minha família. Assim, estes três motivos e mais "pressão familiar" foram eliminados.

O motivo "amor pelo filho" me pareceu bem superficial, mas se traduzido como "amor pela idéia de ter um filho", pode ser um motivo forte para muitas mulheres, já que, por mais que fosse muito mais legal brincar de pique, sempre temos uma tia que nos deu bonecas no aniversário. Além disso, somos todas muito mais familiarizadas com a gestação, o parto, a amamentação, enfim, com a maternidade, do que com clínicas clandestinas de aborto, legislação vigente, preço, procedimentos, métodos de interrupção de gravidez. Sabemos qual tia fez cesariana, qual fez parto normal, por quanto tempo amamentou, se doeu, se não doeu, mas não sabemos se quer de uma tia que tenha interrompido a gravidez, pelo menos até nos encontrarmos numa situação de apuros e assistirmos a um súbito interesse familiar em desmistificar o assunto.

O motivo "não tem noção da responsabilidade" acabou pesando para os dois lados: Se há noção da responsabilidade que é ter um filho, há também noção da responsabilidade que é fazer um aborto numa sociedade onde esta opção é criminalizada (uma criminalização que isenta os homens de sua responsabilidade), não vamos nos esquecer de mulheres que são denunciadas por hospitais à justiça todos os anos por terem praticado aborto, sem contar com as mini-denuncias entre familiares e amigos mais distantes, que "acidentalmente" ficam sabendo do acontecido. Passava muito pela minha cabeça que ter um filho seria uma experiência que, por mais difícil que fosse, poderia ser compartilhada com todos.

Não me parece, assim, razoável questionar se a mulher tem ou não noção da responsabilidade que é "manter uma gravidez não-planejada, em relações não estruturadas". Aliás, depois de analisar todos os motivos propostos pela enquete, junto com os meus motivos, os motivos de mulheres de classes sociais diferentes da minha e os que poderiam ser motivos comuns a todas nós, a enquete não me parece razoável como um todo, uma vez que colocar em questão os motivos que levam uma mulher a fazer ou não o aborto desrespeita a sua capacidade de decisão autônoma e infringe seus direitos à liberdade, privacidade e bem-estar. É, portanto contrário a um dos principais argumentos em favor do direito ao aborto:

O reconhecimento da competência ética das mulheres para decidir sobre sua sexualidade e reprodução é o princípio dos direitos humanos e da cidadania que substancia os direitos sexuais e reprodutivos.

No intuito de tornar o debate mais produtivo, sugiro, portanto, uma mudança de foco da enquete: Não nos cabe discutir os motivos das mulheres mas sim o porquê de esses motivos não serem respeitados.

Fica a sugestão e um grande abraço!
Kollontai.

Para mais informações sobre o assunto sugiro textos publicados pelo o comitê de jornadas pelo direito ao aborto legal e seguro na página do Centro de Mídia Independente:


A situação do aborto na América Latina e no mundo
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/09/330930.shtml

A legislação do aborto no Brasil: passado e presente
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/09/330928.shtml

Apresentação: o presente da luta pela discriminalização do aborto
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/09/330932.shtml

Anencefalia
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/09/330931.shtml

Argumentos em favor do direito ao aborto
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/09/330933.shtml

Dúvidas mais comuns
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/09/330934.shtml

Fontes para consulta sobre a descriminalização do aborto
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/09/330937.shtml

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