quarta-feira, 22 de março de 2006

Oposição democrática

Um dos efeitos concretos da primeira alternância de poder, de fato ocorrida no Brasil, desde o Golpe de 64, foi o revisionismo histórico patrocinado, literalmente inclusive, por setores conservadores da sociedade brasileira - os quais sempre encontraram órgãos de imprensa dispostos, quando não ávidos, a divulgá-lo.

Uma mentira recorrentemente propagandeada é a de que o Partido dos Trabalhadores teria exercido oposição irresponsável no decorrer das décadas de 1980 e 1990, o que revela a total falta de capacidade, ou de vontade, de contextualizar historicamente.

Nos anos 80, o PT era um partido pequeno em sua inserção no sistema político, mas intrinsecamente ligado a movimentos sociais, mormente urbanos, mas não apenas, que até então tinham sido mantidos à margem do processo político-decisório, pelo regime autoritário. O novo partido, organicamente ligado a esse setores populares sem acesso à esfera do poder de decisão, lhes propiciava voz no seio do nascente sistema polítco pós-ditadura. Por se tratar de partido pequeno e popular, sem ligação com setores econômicos fortes, e com escasso espaço na imprensa, era mais do que natural que, no exercício democrático de se fazer representar e ouvir, por vezes gritasse e adotasse medidas tidas, pelo "mainstream" político, como radicais.

Quando posições extremadas foram defendidas, como a abstenção na votação indireta para presidente, em 1985, tal decisão refletia o posicionamento de setores da sociedade, que desejavam eleição presidencial direta, e que, apenas no PT, foi representado; a ação também foi levada a cabo pois foi escolha racional: tendo ainda uma bancada minúscula, tratava-se de marcar posição. Certamente, tivesse o PT uma bancada mais significativa, que tivesse influência no resultado final, e a postura teria sido outra.

Nos anos 90, foi esta força política o canal de expressão política dos setores da sociedade que não se viam contemplados nos governos de viés neoliberalizantes que predominaram durante todo este decênio.

Não é exagero atribuir à existência de um partido orgânico, com práticas partidárias consolidadas, como o PT, o fato de, no Brasil, não termos tido o surgimento de grupos armados contestatórios, como o Peru do Sendero Luminoso ou a Colômbia das Farc, onde os setores marginalizados recorreram à violência para influir no processo político; ou descambando numa crise de legitimidade do sistema, como na Argentina, onde prevaleceu, no jogo político, a visão única do neoliberalismo "menemista", sem espaço para o contraditório, que levou à adoção radical da agenda neoliberal que gerou a crise social de 2002. Graças à existência de um partido, como o PT, enraizado na sociedade civil, os governos conservadores brasileiros dos anos 90 não empreenderam um neoliberalismo extremo.

O PT é uma confederação de movimentos sociais e lhes serviu como canal entre sociedade civil e processo político, além de inserir na pauta da agenda política nacional assuntos de seu interesse. Quando um parlamentar petista defende uma posição no plenário, como a contestação às privatizações ou o aumento do salário mínimo, ela representa o pleito legítimo de movimentos populares ligados a estas causas. Quando vociferava o descontentamento perante políticas adotadas pelos governos direitistas, expressava a insatisfação de segmentos sociais que, de outra forma, não teriam seus pontos de vista ouvidos.

Durante todo o período da reabertura política, a oposição progressista (PT, mais os partidos de esquerda e de centro-esquerda) nunca dispôs de número de parlamentares suficiente de maneira que pudessem influir diretamente nas votações, mesmo as mais importantes, que requeriam maioria qualificada. O seu papel foi, tão-somente, expressar os interesses de setores fora do processo político - o que não é pouco, pois proveu-lhe, assim, de substância democrática.

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