Por mais restrições que possam ser feitas à realização desse referendo – e as há muitas – isso era pra ter sido feita à época que foi aprovado no Congresso. Discutir sua validade agora é fugir ao tema, distrair a atenção do que realmente está em jogo. Estamos sendo convidados a escolher SIM ou NÃO a um controle mais rígido sobre o controle da venda de armas de fogo. Venho, por meio desse texto, expor o que penso a respeito e chamar meus amigos à reflexão sobre o tema.
bernardo jurema
Sim ao bom senso
“Imaginem uma cidade habitada por cidadãos irascíveis, desonestos e rixentos. Seria permanente o risco de morrer e permanente, portanto, a terrível angústia, neutralizando qualquer evolução normal. A autoridade da cidade quer então suprimir estas condições pavorosas... mas cada magistrado ou concidadão, sob nenhuma condição, aceita que lhe proíbam trazer um punhal no cinto!”
Albert Einstein, “Como vejo o mundo”, comentando acerca da Conferência de Desarmamento em 1932... Mas bem que poderia ser sobre o Referendo no Brasil em 2005!
Eu, na minha ingenuidade e humanismo, achava que a estupidez das armas de fogo fosse razão suficiente para qualquer cidadão optar pelo “SIM” no Referendo. Afinal, trata-se de um objeto que é feito com nenhuma outra finalidade senão a de que seres humanos matem seres humanos. E, na minha visão de mundo, isto basta para apoiar qualquer iniciativa que vise diminuir os prejuízos humanos, sociais e econômicos que a violência armada está provocando em nosso país.
Causa-me espanto a quantidade de pessoas que apóiam o “Não”, não pelo fato de adotarem posição contrária à minha, mas sim por defenderem algo contra o que elas mesmas pensam.
Tem algo mais anti-cristão do que uma arma de fogo? A própria idéia de tirar a vida de outro ser humano vai de encontro aos ensinamentos mais elementares de Cristo (não matarás, amai ao próximo, perdoai a quem vos tem ofendido...). Como podem praticantes da fé cristã, então, opor-se a maior rigor na comercialização de armas de fogo e assim evitar que inocentes morram? Como podem os cristão indignarem-se com o aborto de um feto de dois meses, e demonstrarem a mesma indignação contra uma medida que visa a que cidadãos brasileiros parem de matar um ao outro?
Como podem pessoas que se dizem de esquerda ou progressistas defenderem o “Não” e, desse modo, contribuírem decisivamente para a manutenção do status quo? Como podem defender o Lobby da Bala, cujo grande interesse é a conservação dos grandes lucros da indústria armamentista, e não o bem-estar coletivo? Ademais, como não perceber que os pobres, como sempre, continuam excluídos dessa concepção bizarra de “segurança pública individual”? Afinal, as classes média e alta têm acesso às armas e à segurança privada, enquanto que os pobres estão entregues à própria sorte, quando não ao crime organizado. Tradicionalmente, nossas classes abastadas têm buscado resolver nossos problemas sociais privatizando-os; ou seja, não os resolvendo para todos, mas apenas para quem possa pagar pela solução. O “SIM” representa uma quebra com essa atitude tradicional e egoísta, e o resgate do Estado brasileiro.
Por sua vez, os conservadores, maiores defensores do “Não”, também se contradizem. Num liberalismo parcial e seletivo, reclamam da interferência do Estado no suposto direito do cidadão de matar o outro (o direito a uma arma é isso, uma vez que é com esse fim que ela é feita). Porém, não admitem a liberdade do indivíduo de escolher praticar sua sexualidade como bem entenda ou de consumir substâncias alucinógenas culturalmente menos aceitas do que outras. Além disso, os conservadores defendem posição tão extremada à direita que terminam por encontrar-se com a extrema esquerda no outro lado do espectro político, pois em última instância defendem a ausência total do Estado para a resolução de conflito entre os cidadãos, deixando a estes a responsabilidade por resolverem suas divergências. Em outras palavras, isso é anarquismo. Eu, na minha ingenuidade, me pergunto: continuarão os conservadores a adotar tal ideologia quando hordas de excluídas saiam do confino de suas periferias para reivindicar seus direitos legítimos e historicamente renegados a moradia decente, saúde, educação e lazer, lançando mão do tão propalado direito de matar?
A opção pelo “Não” é, vale ressaltar, um contra-senso no que diz respeito à lógica da ordem econômica capitalista. Com a aprovação do “SIM”, a demanda por armas no mercado negro permanecerá inalterada. A oferta, no entanto, diminuirá sensivelmente, o que implica no aumento do preço das armas de fogo nesse mercado. A arma ficaria mais cara, porque mais escassa, dificultando deveras o acesso dos bandidos, sobretudo aqueles de pequenos delitos nos grandes centros urbanos. O aumento do preço no mercado negro, decorrente do efeito da lei de oferta e demanda, tenderá a, no longo prazo, promover a diminuição de armas ilegais em circulação.
Mas, a grande contradição da opção pelo “Não” é mesmo com o bom senso. O “Não” representa que tudo permaneça como está. E, do jeito que está, nosso Brasil não está bem. Se mais pessoas armadas resolvesse o problema da violência urbana, o Brasil seria um paraíso. Não é o caso. A escolha pelo “SIM” representa uma mudança, por menor que seja, na direção de uma sociedade mais pacífica. Trata-se de uma questão lógica: necessariamente, quanto menos armas em circulação, menos seres humanos morrerão em decorrência delas. Mera relação de causa e efeito. Além disso, o “SIM”, apesar da má informação divulgada, não consiste em “proibição” do comércio de armas de fogo, mas sim seu controle mais rígido. Torna-se mais difícil, não impossível, o acesso às armas que matam seres humanos. Ex-policiais e militares, promotores públicos, indivíduos que vivem em áreas isoladas ou rurais são alguns dos setores que continuarão podendo comprar armas.
Finalmente, o apelo da campanha do “Não” ao direito à auto-defesa baseia-se na falsa premissa de que um cidadão armado estaria, por isso, mais seguro. Ao contrário, torna-se mais vulnerável, por expor-se, pondo em risco a si como aos seus próximos. Além de contribuir para que sua arma alimente o fluxo do mercado negro de armas que forma o arsenal da criminalidade.
Num país como o nosso, onde impera uma cultura de violência, nas formas de coronelismo, defesa de honra e revanchismo, acrescido de uma impunidade absurda, e com desigualdade social revoltante, não faz sentido armar a população.
Trata-se, enfim, de decidirmos, no próximo dia 23, que tipo de sociedade queremos legar aos nossos filhos, sobrinhos, netos e bisnetos. De um lado, o do Não, uma sociedade individualista, regida pela mentalidade do “cada um por si”, que está se matando progressivamente, e cuja violência começa cada vez mais a transbordar das periferias pobres em direção aos centros urbanos abastados. De outro lado, o do SIM, uma sociedade que, apesar de todos os problemas, tenta dar um primeiro passo, ainda que incipiente, na direção de uma solução coletiva – para todos –, e não privada – para poucos.
8 comentários:
Bernardo, gostei muito de seu texto. De fato, uma questão de bom senso. Um abraço!
Nunca tive tanto medo do Brasil, país mais ''facista'' não existe. Uma pesquisa dá o não na frente. O Brasil é o país onde se fala mais em amor e onde se pratica mais o ódio. O "realismo" do discurso do 'estupra-ursinho-carinhoso' é de morte: constata-se uma realidade existente e escolhe-se o 'deixa-como-está' porque não se pode confiar nas instituições do país. Mais ódio. Tenho me vonvencido que votar sim, é mais do que bom senso...
Muito bom texto Berna. Valeu!
Berna, a permissividade está mais uma vez na propaganda. As pessoas estão sendo enganadas de maneira descarada, embora não percebam. Uma outra parte está naquilo que o Jampa disse, o amor no discurso e o ódio na prática. Os cristãos são os exemplos mais visíveis dessa contradição, além dos argumentos que vc colocou, no evangelho está claro, o que Cristo fez quando lhe bateram na cara?, deu a outra face, bastava esse exemplo para os que se dizem fiéis, seguidores do exemplo do nazareno, se colocarem a favor da não violência. O povo brasileiro, em sua maioria, é extremamente conservador, parte por ignorância, parte por manipulação.Além disso, prefere jogar a responsabilidade para os outros a ter que decidir ele próprio o que quer para si.
Quando Veja e PFL estão do mesmo lado do PSTU apoiando enfaticamente e de forma contundente alguma coisa, só uma conclusão é possível: a opinião contrária é a certa.
a mesquinhez e a hipocrisia venceram o bom senso.
questão de princípios, guila... Acho bom senso tudo contra a morte de pessoas. Essa votação apenas comprova o conservadorismo e o atraso cultural da sociedade brasileira. Foi ele mesmo o responsável pela Revolta da Vacina e pelo fato de o BRasil ter sido o último país escravocrata. Arma só se ter com um fim - o de matar. E no Brasil isso tem se tornado um problema de ordem pública. A sua retórica legitima o status-quo e era a mesma usada pra legitimar a escravidão. Certas coisas são, sim, tão simples assim. E vc, que nao percebe adotar posição totalmente anacrônica e conservadora, análoga a de figuras como PSTU, Veja, PFL e quetais, querendo ser progessista - isso entristece também. Nao ves a hipocrisia que eh defender um direito privado - de poucos -, afinal uma 38 custa mais de 1000 reais, e nenhum trabalhador ou homem do povo tem condições de comprar, em nome de um direito coletivo? Eh uma posição cínica e burguesamente cômoda.
Essa história de legitima defesa associada a arma é altamente falaciosa, porque a maioria das pessoas não têm "direito" a esse tipo de defesa, mesmo levando em consideração que as pessoas gostam do velho "olho por olho", "dente por dente"- ignorando as lições gritantes que o século XX registrou audivisualmente - é preciso então criar uma espécide "bolsa familia das armas", para realmente "democratizar" o direito dos cidadãos matarem uns aos outros, como fora escolhido no referendo. Agora mais indignante é ver o sujeito com esse discurso de paz, pô, se vc opta por uma atitude violenta é o seu direito, agora me poupe de HIPOCRISIA, e assuma todas as consequências de sua postura belicista. Lembre-se disso quando pensar em lamentar a violência no país, vc é um dos seus legitimadores.
Guila - você baseia sua defesa pelo Não estritamente na sua ideologia libertária européia, não levando em conta a dura realidade brasileira. O "bom senso" a que me refiro no final do texto refere-se ao pragmatismo, ou senso prático, que significaria a vitória do "Sim", pois, constatando um problema social - alta taxa de mortandade por armas de fogo -, propunha uma solução prática, não-ideológica (menos armas em circulação = menos mortes por armas de fogo, algo empiricamente comprovado, como demonstrou o editorial da Folha de São Paulo). Havia, também, justificativas ideológicas pelo Sim - todas explicitadas no texto.
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