sábado, 15 de outubro de 2005

Sim ao bom senso

Por mais restrições que possam ser feitas à realização desse referendo – e as há muitas – isso era pra ter sido feita à época que foi aprovado no Congresso. Discutir sua validade agora é fugir ao tema, distrair a atenção do que realmente está em jogo. Estamos sendo convidados a escolher SIM ou NÃO a um controle mais rígido sobre o controle da venda de armas de fogo. Venho, por meio desse texto, expor o que penso a respeito e chamar meus amigos à reflexão sobre o tema.
bernardo jurema




Sim ao bom senso


“Imaginem uma cidade habitada por cidadãos irascíveis, desonestos e rixentos. Seria permanente o risco de morrer e permanente, portanto, a terrível angústia, neutralizando qualquer evolução normal. A autoridade da cidade quer então suprimir estas condições pavorosas... mas cada magistrado ou concidadão, sob nenhuma condição, aceita que lhe proíbam trazer um punhal no cinto!”

Albert Einstein, “Como vejo o mundo”, comentando acerca da Conferência de Desarmamento em 1932... Mas bem que poderia ser sobre o Referendo no Brasil em 2005!


Eu, na minha ingenuidade e humanismo, achava que a estupidez das armas de fogo fosse razão suficiente para qualquer cidadão optar pelo “SIM” no Referendo. Afinal, trata-se de um objeto que é feito com nenhuma outra finalidade senão a de que seres humanos matem seres humanos. E, na minha visão de mundo, isto basta para apoiar qualquer iniciativa que vise diminuir os prejuízos humanos, sociais e econômicos que a violência armada está provocando em nosso país.

Causa-me espanto a quantidade de pessoas que apóiam o “Não”, não pelo fato de adotarem posição contrária à minha, mas sim por defenderem algo contra o que elas mesmas pensam.

Tem algo mais anti-cristão do que uma arma de fogo? A própria idéia de tirar a vida de outro ser humano vai de encontro aos ensinamentos mais elementares de Cristo (não matarás, amai ao próximo, perdoai a quem vos tem ofendido...). Como podem praticantes da fé cristã, então, opor-se a maior rigor na comercialização de armas de fogo e assim evitar que inocentes morram? Como podem os cristão indignarem-se com o aborto de um feto de dois meses, e demonstrarem a mesma indignação contra uma medida que visa a que cidadãos brasileiros parem de matar um ao outro?

Como podem pessoas que se dizem de esquerda ou progressistas defenderem o “Não” e, desse modo, contribuírem decisivamente para a manutenção do status quo? Como podem defender o Lobby da Bala, cujo grande interesse é a conservação dos grandes lucros da indústria armamentista, e não o bem-estar coletivo? Ademais, como não perceber que os pobres, como sempre, continuam excluídos dessa concepção bizarra de “segurança pública individual”? Afinal, as classes média e alta têm acesso às armas e à segurança privada, enquanto que os pobres estão entregues à própria sorte, quando não ao crime organizado. Tradicionalmente, nossas classes abastadas têm buscado resolver nossos problemas sociais privatizando-os; ou seja, não os resolvendo para todos, mas apenas para quem possa pagar pela solução. O “SIM” representa uma quebra com essa atitude tradicional e egoísta, e o resgate do Estado brasileiro.

Por sua vez, os conservadores, maiores defensores do “Não”, também se contradizem. Num liberalismo parcial e seletivo, reclamam da interferência do Estado no suposto direito do cidadão de matar o outro (o direito a uma arma é isso, uma vez que é com esse fim que ela é feita). Porém, não admitem a liberdade do indivíduo de escolher praticar sua sexualidade como bem entenda ou de consumir substâncias alucinógenas culturalmente menos aceitas do que outras. Além disso, os conservadores defendem posição tão extremada à direita que terminam por encontrar-se com a extrema esquerda no outro lado do espectro político, pois em última instância defendem a ausência total do Estado para a resolução de conflito entre os cidadãos, deixando a estes a responsabilidade por resolverem suas divergências. Em outras palavras, isso é anarquismo. Eu, na minha ingenuidade, me pergunto: continuarão os conservadores a adotar tal ideologia quando hordas de excluídas saiam do confino de suas periferias para reivindicar seus direitos legítimos e historicamente renegados a moradia decente, saúde, educação e lazer, lançando mão do tão propalado direito de matar?

A opção pelo “Não” é, vale ressaltar, um contra-senso no que diz respeito à lógica da ordem econômica capitalista. Com a aprovação do “SIM”, a demanda por armas no mercado negro permanecerá inalterada. A oferta, no entanto, diminuirá sensivelmente, o que implica no aumento do preço das armas de fogo nesse mercado. A arma ficaria mais cara, porque mais escassa, dificultando deveras o acesso dos bandidos, sobretudo aqueles de pequenos delitos nos grandes centros urbanos. O aumento do preço no mercado negro, decorrente do efeito da lei de oferta e demanda, tenderá a, no longo prazo, promover a diminuição de armas ilegais em circulação.

Mas, a grande contradição da opção pelo “Não” é mesmo com o bom senso. O “Não” representa que tudo permaneça como está. E, do jeito que está, nosso Brasil não está bem. Se mais pessoas armadas resolvesse o problema da violência urbana, o Brasil seria um paraíso. Não é o caso. A escolha pelo “SIM” representa uma mudança, por menor que seja, na direção de uma sociedade mais pacífica. Trata-se de uma questão lógica: necessariamente, quanto menos armas em circulação, menos seres humanos morrerão em decorrência delas. Mera relação de causa e efeito. Além disso, o “SIM”, apesar da má informação divulgada, não consiste em “proibição” do comércio de armas de fogo, mas sim seu controle mais rígido. Torna-se mais difícil, não impossível, o acesso às armas que matam seres humanos. Ex-policiais e militares, promotores públicos, indivíduos que vivem em áreas isoladas ou rurais são alguns dos setores que continuarão podendo comprar armas.

Finalmente, o apelo da campanha do “Não” ao direito à auto-defesa baseia-se na falsa premissa de que um cidadão armado estaria, por isso, mais seguro. Ao contrário, torna-se mais vulnerável, por expor-se, pondo em risco a si como aos seus próximos. Além de contribuir para que sua arma alimente o fluxo do mercado negro de armas que forma o arsenal da criminalidade.

Num país como o nosso, onde impera uma cultura de violência, nas formas de coronelismo, defesa de honra e revanchismo, acrescido de uma impunidade absurda, e com desigualdade social revoltante, não faz sentido armar a população.

Trata-se, enfim, de decidirmos, no próximo dia 23, que tipo de sociedade queremos legar aos nossos filhos, sobrinhos, netos e bisnetos. De um lado, o do Não, uma sociedade individualista, regida pela mentalidade do “cada um por si”, que está se matando progressivamente, e cuja violência começa cada vez mais a transbordar das periferias pobres em direção aos centros urbanos abastados. De outro lado, o do SIM, uma sociedade que, apesar de todos os problemas, tenta dar um primeiro passo, ainda que incipiente, na direção de uma solução coletiva – para todos –, e não privada – para poucos.

8 comentários:

Anônimo disse...

Bernardo, gostei muito de seu texto. De fato, uma questão de bom senso. Um abraço!

Anônimo disse...

Nunca tive tanto medo do Brasil, país mais ''facista'' não existe. Uma pesquisa dá o não na frente. O Brasil é o país onde se fala mais em amor e onde se pratica mais o ódio. O "realismo" do discurso do 'estupra-ursinho-carinhoso' é de morte: constata-se uma realidade existente e escolhe-se o 'deixa-como-está' porque não se pode confiar nas instituições do país. Mais ódio. Tenho me vonvencido que votar sim, é mais do que bom senso...
Muito bom texto Berna. Valeu!

slavo disse...

Berna, a permissividade está mais uma vez na propaganda. As pessoas estão sendo enganadas de maneira descarada, embora não percebam. Uma outra parte está naquilo que o Jampa disse, o amor no discurso e o ódio na prática. Os cristãos são os exemplos mais visíveis dessa contradição, além dos argumentos que vc colocou, no evangelho está claro, o que Cristo fez quando lhe bateram na cara?, deu a outra face, bastava esse exemplo para os que se dizem fiéis, seguidores do exemplo do nazareno, se colocarem a favor da não violência. O povo brasileiro, em sua maioria, é extremamente conservador, parte por ignorância, parte por manipulação.Além disso, prefere jogar a responsabilidade para os outros a ter que decidir ele próprio o que quer para si.

Dr. Biu disse...

Quando Veja e PFL estão do mesmo lado do PSTU apoiando enfaticamente e de forma contundente alguma coisa, só uma conclusão é possível: a opinião contrária é a certa.

Bernardo Jurema disse...

a mesquinhez e a hipocrisia venceram o bom senso.

Bernardo Jurema disse...

questão de princípios, guila... Acho bom senso tudo contra a morte de pessoas. Essa votação apenas comprova o conservadorismo e o atraso cultural da sociedade brasileira. Foi ele mesmo o responsável pela Revolta da Vacina e pelo fato de o BRasil ter sido o último país escravocrata. Arma só se ter com um fim - o de matar. E no Brasil isso tem se tornado um problema de ordem pública. A sua retórica legitima o status-quo e era a mesma usada pra legitimar a escravidão. Certas coisas são, sim, tão simples assim. E vc, que nao percebe adotar posição totalmente anacrônica e conservadora, análoga a de figuras como PSTU, Veja, PFL e quetais, querendo ser progessista - isso entristece também. Nao ves a hipocrisia que eh defender um direito privado - de poucos -, afinal uma 38 custa mais de 1000 reais, e nenhum trabalhador ou homem do povo tem condições de comprar, em nome de um direito coletivo? Eh uma posição cínica e burguesamente cômoda.

slavo disse...

Essa história de legitima defesa associada a arma é altamente falaciosa, porque a maioria das pessoas não têm "direito" a esse tipo de defesa, mesmo levando em consideração que as pessoas gostam do velho "olho por olho", "dente por dente"- ignorando as lições gritantes que o século XX registrou audivisualmente - é preciso então criar uma espécide "bolsa familia das armas", para realmente "democratizar" o direito dos cidadãos matarem uns aos outros, como fora escolhido no referendo. Agora mais indignante é ver o sujeito com esse discurso de paz, pô, se vc opta por uma atitude violenta é o seu direito, agora me poupe de HIPOCRISIA, e assuma todas as consequências de sua postura belicista. Lembre-se disso quando pensar em lamentar a violência no país, vc é um dos seus legitimadores.

Bernardo Jurema disse...

Guila - você baseia sua defesa pelo Não estritamente na sua ideologia libertária européia, não levando em conta a dura realidade brasileira. O "bom senso" a que me refiro no final do texto refere-se ao pragmatismo, ou senso prático, que significaria a vitória do "Sim", pois, constatando um problema social - alta taxa de mortandade por armas de fogo -, propunha uma solução prática, não-ideológica (menos armas em circulação = menos mortes por armas de fogo, algo empiricamente comprovado, como demonstrou o editorial da Folha de São Paulo). Havia, também, justificativas ideológicas pelo Sim - todas explicitadas no texto.